Teoria da perda de uma chance: uma análise dos argumentos jurisprudenciais favoráveis a sua aceitação no Brasil.
Loss of a chance theory: an analysis of the favorable jurisprudential arguments to its acceptance in Brazil.
Roberto Magno Reis Netto1 e Alexandre dos Santos Nascimento2
1 Escola Superior Madre Celeste, Brasil, Mestrado em Segurança Pública, e-mail: bob_reis_ufpa@yahoo.com.br
2 Escola Superior Madre Celeste, Brasil, Especialista em Direito Civil e Processual, e-mail: Alexandrenascimento82@gmail.com
Recebido em: 18/06/2018 - Revisado em: 03/08/2018 - Aprovado em: 05/09/2018 - Disponível em: 01/10/2018
Resumo
O presente artigo trabalhou a teoria da perda de uma chance, a partir das perspectivas do direito civil e processual civil. Como objetivo geral buscou-se verificar quais foram os fundamentos jurídicos utilizados pela jurisprudência nacional para aceitação da teoria da perda de uma chance no Brasil. Na análise dos argumentos que subsidiam sua aplicação no Brasil, fundamentalmente, foram encontrados 4 (quatro) espécies de fundamentos jurídicos: a) A teoria da perda de uma chance como espécie de responsabilidade civil (consolidada pelo STJ); b) A aplicação analógica do direito estrangeiro para aceitação da teoria no Brasil; c) A aplicação analógica de normas do ordenamento, superando a ausência de previsão expressa; e, d) A aplicação da teoria como forma de saneamento de lacunas da lei.
Palavras-chave: Jurisprudência. Perda de uma chance. Fundamentos jurídicos. Aceitação.
Abstract
This article worked on the theory of the loss of a chance, from the perspectives of civil and civil procedural law. The general objective was to verify wich were the legal bases used by national jurisprudence to accept the loss of a chance theory in Brazil. In the analysis of the arguments that subsidize its application in Brazil, fundamentally, four (4) species of juridical foundations were found: a) The the loss of a chance theory as a kind of civil responsibility (consolidated by STJ ); b) The analogical application of the foreign law for acceptance of the theory in Brazil; c) The analogical application of norms of the planning, surpassing the absence of express prediction; and, d) The application of theory as a way of sanitizing gaps in the law.
Keywords: Jurisprudence. Loss of a chance. Legal basis. Acceptance.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo se debruçou sobre a Teoria da Perda de uma Chance, ambientando sua análise dentro dos ramos dos Direitos Civil e Processual Civil, especificamente, no que tange à temática da responsabilidade Civil. Aquela teoria surgiu da compreensão de que, independentemente de um resultado final, a ação comissiva ou omissiva de um agente que privasse outrem da oportunidade de chegar a um resultado final benéfico e potencialmente alcançável, permitiria a busca por uma compensação judicial da chance perdida (DIAS, 2010).
Embora não haja previsão legislativa disciplinando o tema, tal teoria é amplamente utilizada pelas cortes brasileiras no intuito de solucionar anseios sociais, aparentemente, com base nas fontes da analogia e o direito comparado (hipótese inicial deste estudo). E, diante dessa constatação referida pela literatura consultada, o trabalho visou elucidar a seguinte indagação: Quais foram os fundamentos jurídicos jurisprudenciais utilizados para admissão da teoria da perda de uma chance no Brasil?
Em termos práticos, buscou-se uma triangulação entre fundamentos jurisprudenciais e a literatura a respeito do tema, para esclarecer o substrato que ampara o uso de uma doutrina estrangeira no país, a despeito da total ausência de previsão jurídica sobre o tema no Código Civil e legislações correlatas, o que, desde logo, justifica a realização do estudo.
Certamente, o mesmo também surgiu como uma proposta de acréscimo ao debate acadêmico sobre a temática da responsabilidade civil, bem como, como um instrumento de esclarecimento a respeito do entendimento dos tribunais brasileiros sobre a teoria estudada.
Como objetivo geral buscou-se verificar quais foram os fundamentos jurídicos utilizados pela jurisprudência nacional para aceitação da teoria da perda de uma chance no Brasil. De forma específica, buscou-se discutir os conceitos de responsabilidade civil e suas espécies, com enfoque sobre a teoria da perda de uma chance; realizar uma pesquisa bibliográfica e documental para levantamento de entendimentos e julgados sobre a temática, seguindo-se a uma análise de conteúdo para identificação de fundamentos que justificariam sua aceitação prática; e a partir dos dados colhidos, classificar os fundamentos jurídicos de aceitação da teoria da perda de uma chance no Brasil.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. Conceito de Responsabilidade Civil
Com a evolução das sociedades, buscou-se a superação da clássica prática da autotutela de interesses, assumindo o Estado a função de intermediador das relações entre as pessoas, apoiando-se, no caso dos países de tradição da civil law, em codificações legais e outras fontes (GONÇALVES, 2012).
Atualmente, determina-se aos indivíduos que, ao externarem as suas vontades, o façam de forma respeitosa, e, caso haja a violação de algum direito ou garantia nessa manifestação, propugna-se que os mesmos sejam responsabilizados, nas mais variadas esferas (Civil, criminal, administrativa e tributária), conforme o caso.
Sobre a gênese do termo responsabilidade elucidam Gagliano e Pamplona Filho:
A palavra “responsabilidade” tem sua origem no verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir com as consequências jurídicas de sua atividade, contendo, ainda, a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vinculava, no Direito Romano, o devedor nos contratos verbais. A acepção que se faz de responsabilidade, portanto, está ligada ao surgimento de uma obrigação derivada, ou seja, um dever jurídico sucessivo, em função da ocorrência de um fato jurídico lato sensu. (2017, p. 854)
Nesse sentido, como forma de resguardar o equilíbrio moral e patrimonial entre as relações sociais (GONÇALVES, 2012), o instituto da responsabilidade civil apregoa a reparação dos danos causados pela ação ou omissão de pessoas físicas ou jurídicas quando da prática dos mais diversos atos jurídicos (GONÇALVES, 2012; COELHO, 2012).
A violação de normas jurídicas de convivência social, nesta senda, faz com que surja, por meio do mencionado instituto, uma obrigação de reparação de danos (COELHO, 2012) em razão da prévia infringência ao dever jurídico de não violação à esfera jurídica alheia (TARTUCE, 2011)
Segundo Assis Neto, a responsabilidade é:
[...] a fórmula jurídica concebida para criar um vínculo entre alguém que viola um direito e outrem a quem se cria um direito decorrente dessa violação, independentemente de declaração de vontade dirigida a esse efeito. (2017, p. 837).
Para Gagliano e Pamplona Filho (2017), o conceito de responsabilidade civil o denota como instituto que pressupõe a ação danosa de um indivíduo (mediante violação à norma jurídica preexistente), que, ao trazer consequências negativas à esfera jurídica de outrem, passará à responder por um dever (obrigação) de restabelecimento da harmonia sócio patrimonial perturbada (reparando ou compensando o dano causado).
Nesse diapasão, entendem Assis Neto, Jesus e Melo:
Podemos conceituar, enfim, portanto, a responsabilidade civil como o vínculo jurídico que se estabelece entre o causador de um dano e sua vítima. A matéria encontra previsão parcial entre os arts. 186 a t 88 do Código Civil que tratam-na, entretanto, apenas sob o prisma do ato ilícito, ou seja, aquele praticado por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência- ou ainda por abuso de direito (matéria já analisada no Capítulo X da Parte li). A responsabilidade civil, no entanto, pode surgir não apenas do ato doloso ou culposo (responsabilidade subjetiva), mas, também, de atos danosos sem culpa ou dolo, desde que haja previsão legal ou risco na atividade (2017, p.839).
Ainda, deve-se acrescentar o entendimento propugnado por Rocha (2010) ao afirmar que, na atualidade, o instituto da responsabilidade civil detém uma finalidade de tutela dos direitos da vítima de uma ação contrária ao ordenamento, e não meramente o intuito de punição do potencial agressor à ordem, pelo que se reafirma a ideia de Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 858), que declaram: “a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse particular, sujeitando o infrator a uma compensação pecuniária ou ‘in natura’”.
2.2 Espécie de Responsabilidade
Para Gagliano e Pamplona Filho (2017), a responsabilidade civil é classificada sistematicamente, tomando-se por base a questão da culpa e posteriormente a natureza da norma jurídica violada.
No que tange à questão da culpa, Gagliano e Pamplona Filho (2017) afirmam que a responsabilidade civil divide se em objetiva e subjetiva: a responsabilidade civil subjetiva é a decorrente de dano causado em função de ato doloso ou culposo de uma pessoa, enquanto que a responsabilidade civil objetiva seria conceituada da seguinte maneira:
[...] hipóteses há em que não é necessário sequer ser caracterizada a culpa. Nesses casos, estaremos diante do que se convencionou chamar de “responsabilidade civil objetiva”. Segundo tal espécie de responsabilidade, o dolo ou culpa na conduta do agente causador do dano é irrelevante juridicamente, haja vista que somente será necessária a existência do elo de causalidade entre o dano e a conduta do agente responsável, para que surja o dever de indenizar. (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2017, p. 863).
No que concerne à natureza da norma jurídica violada, Gagliano e Pamplona Filho (2017) propõem a classificação em responsabilidade civil contratual e extracontratual: a responsabilidade civil contratual decorreria do inadimplemento da obrigação prevista no contrato, ou seja, a violação de norma contratual anteriormente fixada pelas partes; enquanto que a responsabilidade civil extracontratual, por sua vez, seria a violação direta de uma norma legal objetiva, não prevista em negócio jurídico contratual previamente estipulado pelos envolvidos, mas que prevê possibilidade de assunção obrigacional específica.
2.3 Teoria da Perda de uma Chance
Aduz Silva (2015, p.4), ao capitular a origem da teoria da perda de uma chance no Brasil, que “[...] engendrada do direito francês, a perda de uma chance (ou perte d’ um chance, como querem os franceses, ou mesmo loss of a chance, no dizer dos ingleses) já é reconhecida no sistema jurídico brasileiro, ganhando a simpatia da doutrina e da jurisprudência”.
Paula (2015), por sua vez, aduz que “a teoria da perda de uma chance teve sua origem na França. A doutrina destaca alguns casos pioneiros que se evidenciaram para o nascimento desta ideia, todavia, é impossível apontar, com precisão, o primeiro caso”. Oportunamente, Paula (2015) também destaca a presença do instituto no direito Italiano, que, em muito, teria sido responsável pela disseminação da teoria ao redor do mundo.
Conforme Savi (2009), foi a partir do direito comparado e da discussão de diversas decisões sobre o assunto (notadamente, oriundas do direito francês) que se propugnou pela aplicação da teoria em questão no direito brasileiro. Após a teoria da perda de uma chance ser amplamente utilizada pela Europa, acabou por ser abordada por doutrinadores nacionais e pela prática jurídica, possibilitando sua discussão em cortes brasileiras.
Silva conceitua a aludida teoria da seguinte maneira:
A perda de uma oportunidade séria e concreta é o principal objeto da investigação da teoria, sobretudo o que lhe for inerente, além desses elementos, para a aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio, considerando o ensejo na indenização devida ao indivíduo que sofre diretamente um dano de irreparável ou de difícil reparação (2015, p.21)
Neste interim, Noronha (2007 apud PAULA, 2015) faz um paralelo entre a perda de uma chance e a responsabilidade civil, informando que a responsabilização se dá diante da interrupção do curso da potencial obtenção de benefício em razão de ato antijurídico cometido, trazendo a frustração de uma oportunidade com grande chance de sucesso.
Diante disto, vislumbra-se que a teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance foi importada para o Brasil, como mais instrumento inerente à ideia de responsabilidade civil e que, ao seu turno, visaria ressarcir um prejuízo causado por um terceiro, diante da frustração ilícita da oportunidade concreta de obtenção de um ganho ou benefício por outrem.
Contudo, a pacífica aceitação da teoria não é suficiente para compreender sua incorporação jurídica ao ordenamento e sistemática constitucional nacional, sobretudo, em razão da inexistência de norma jurídica que a preveja. Em razão disso, dada a tradição positivista do direito brasileiro, tornou-se necessário compreender o teor dos fundamentos jurídicos que construíram sua aceitação independentemente de positivação, para, assim, compreender os postulados que permitiram sua validade e eficácia jurídica.
3. METODOLOGIA
3.1 Método
O trabalho se valeu do método hipotético-dedutivo, definido por Marconi e Lakatos (2003), como uma teoria-tentativa que é submetida a um processo de verificação concreta. Assim, partiu-se da hipótese inicial de que a analogia e o direito comparado foram concebidos como fontes diretas do direito, para fins de aceitação da teoria em apreço no Brasil.
Por sua vez, o trabalho compreendeu uma a abordagem qualitativa, pois seu objetivo foi concebido a partir da análise de conteúdo bibliográfico e jurisprudencial, e não de números sobre esta temática.
Como técnicas de pesquisa, nos termos acima mencionados, utilizou-se: a) a pesquisa bibliográfica, em todos os momentos da pesquisa (primeiramente, na composição do referencial teórico, e, adiante, para triangulação dos achados jurisprudenciais e para revelação de postulados implícitos dos julgados); e, b) a pesquisa documental, quanto aos procedimentos de resolução do objeto de pesquisa, debruçada sobre julgados proferidos por cortes nacionais a respeito do tema.
Gil (2008), conceitua a pesquisa documental da seguinte forma:
É muito parecida com a bibliográfica. A diferença está na natureza das fontes, pois esta forma vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos da pesquisa. Além de analisar os documentos de “primeira mão” (documentos de arquivos, igrejas, sindicatos, instituições etc.), existem também aqueles que já foram processados, mas podem receber outras interpretações, como relatórios de empresas, tabelas etc. (GIL, 2008).
Haja vista a existência de poucos julgados que tenham albergado a temática em questão, foram levantados os arestos mais expressivos, até então, já pronunciados a respeito da teoria da perda de uma chance, sob auxílio de mecanismos de busca viabilizados pelos próprios sítios virtuais do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e cortes estaduais comuns.
Foram extraídos os fundamentos utilizados nas decisões selecionadas em razão da aplicação direta da teoria em questão, e, em seguida, realizou-se um procedimento de classificação das amostras conforme a técnica de análise de conteúdo. Ou seja, o tema de cada fundamento, foi classificado e analisado, por meio do que Moraes (1999) definiu como uma metodologia de análise de dados qualitativos, utilizada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos.
4. RESULTADOS
Realizada a pesquisa documental, e, após procedimento de análise de conteúdo, foram classificados os argumentos jurídicos que importaram na aceitação jurídica da teoria da perda de uma chance no Brasil, e, sem seguida, promoveu-se a organização dos resultados conforme cada argumento jurídico encontrado, em cada subseção a seguir.
4.1 Primeiro Argumento: Configuração como Espécie de Responsabilidade Civil
O primeiro argumento que fundamenta a aceitação da teoria da perda de uma chance, encontrado na jurisprudência nacional a respeito do tema, decorre de menções expressas da jurisprudência do STJ, que, por sua vez, acabaram por promover a posterior pacificação do entendimento jurisprudencial das cortes regionais em torno da natureza jurídica da teoria da perda de uma chance.
Conforme a Colenda Corte, esta teoria configuraria mais uma espécie de responsabilidade civil extracontratual, admissível a despeito da ausência de previsão legal expressa, como desiderato de realização de justiça material, vinculado a ideia de razoabilidade e proporcionalidade. Veja-se julgado a respeito:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. RECEBIMENTO COM AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. CONDUTA OMISSIVA E CULPOSA DO ADVOGADO. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. RAZOABILIDADE DO VALOR ARBITRADO. DECISÃO MANTIDA. 1. Responsabilidade civil do advogado, diante de conduta omissiva e culposa, pela impetração de mandado de segurança fora do prazo e sem instrui-lo com os documentos necessários, frustrando a possibilidade da cliente, aprovada em concurso público, de ser nomeada ao cargo pretendido. Aplicação da teoria da “perda de uma chance”. [...] (STJ - EDcl no REsp: 1321606 MS 2011/0237328-0, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 23/04/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/05/2013) (BRASIL, 2013).
Em igual sentido, a título exemplificativo, destaca-se também acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde, claramente, se afirmou a teoria da perda de uma chance como espécie de responsabilidade civil.
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. PAGAMENTO DE INSCRIÇÃO. ERRO DE DIGITAÇÃO. IMPEDIMENTO DE REALIZAÇÃO DE CONCURSO VESTIBULAR. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. COMPROVAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS IN RE IPSA. MANUTENÇÃO DO QUANTUM ARBITRADO. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA MANTIDOS. Há responsabilidade objetiva da empresa, bastando que exista, para caracterizá-la, a relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surgindo o dever de indenizar, independentemente de culpa ou dolo. [...] Configurada a responsabilidade civil pela perda de uma chance, pois o ato ilícito praticado pela ré retirou qualquer probabilidade de a autora obter aprovação no Concurso Vestibular, pois sequer constava como candidata inscrita. Danos morais in re ipsa configurados, pois decorrem do próprio ato ilícito. [...] (Apelação Cível Nº 70040016735, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Julgado em 26/01/2011). (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2011).
Deste modo, observa-se que o entendimento jurisprudencial destacado confirma os postulados apresentados por Noronha, ao afirmar que:
Quando se fala em chance, estamos perante situações que está em curso um processo que propicia a uma pessoa a oportunidade de vir a obter no futuro algo benéfico. Quando se fala em perda de chances, para efeito de responsabilidade civil, é porque esse processo foi interrompido por um determinado fato antijurídico e, por isso, a oportunidade ficou irremediavelmente destruída. Nestes casos, a chance que foi perdida pode ter-se traduzido tanto na frustração da oportunidade de obter uma vantagem, que por isso nunca mais poderá acontecer, como na frustração da oportunidade de evitar um dano. (2007 apud PAULA, 2015).
Nesse sentido, há que se afirmar a coerência dos julgados e da doutrina que apontam a teoria da perda de uma chance com uma forma de responsabilidade civil. Afinal, o uso deste instituto se dá, justamente, em hipóteses nas quais um cidadão sofreria uma lesão ao seu direito em decorrência de uma conduta omissiva ou comissiva de um terceiro (regra geral da responsabilidade civil), sendo mais que coerente a aceitação jurídica da responsabilização daquele primeiro pelo ilícito cometido, ao atingir a chance concreta deste último.
4.2 Segundo Argumento: A Aceitação do Direito Comparado como Fonte Jurídica Concreta
Por conseguinte, outro argumento para aceitação da teoria da perda de uma chance é de que o direito comparado poderia compor uma fonte secundária do direito, na qualidade de instrumento apto a aclarar discussões sobre questões eventualmente omissas na legislação nacional.
É importante ressaltar que este argumento subjaz implícito aos julgados, que, embora não entrem na discussão sobre a possibilidade, técnicas e extensão do uso do direito comparado como fonte do direito em casos regidos pela lei brasileira, foi assente, em diversos julgados, que o Judiciário buscou inspiração em teorias internacionais sobre a teoria.
Sobre o assunto, assevera Savi que:
Durante muito tempo o dano decorrente da perda desta oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo foi ignorado pelo Direito. Como não era possível afirmar com certeza que sem o ato do ofensor a vantagem seria obtida, ignorava-se a existência de um dano diverso da perda da vantagem esperada, qual seja, o dano da perda da oportunidade de obter aquela vantagem. (2006 apud PAULA, 2015).
A mudança deste paradigma, em verdade, só ocorreu quando doutrina e jurisprudência lançaram olhares sobre esta tecnologia jurídica nascida em terras estrangeiras, passando a admitir sua analógica aplicação à casos nacionais.
Concluindo em igual sentido, a literatura destacou que a teoria se sujeitou a um período de debates e discussões, caso a caso, bem como, em sede doutrinária, até ser efetivamente aceira, como bem destacado por Silva, ao afirmar que:
[...] Haja vista a teoria da perda de uma chance ser relativamente recente no direito brasileiro, apesar das discussões no âmbito internacional remeterem ao século XX, incialmente no continente europeu, em razão disso pode-se afirmar que um estudo voltado ao direito comparado seria primordial ao aprofundamento desta temática[...]. (2015, P. 10)
Abaixo, é possível se destacar uma situação em que o direito estrangeiro foi aplicado implicitamente, contudo, sem menção expressa aos processos empregados para tanto, corroborando a afirmativa de que o mesmo é utilizado como fonte do direito.
DIREITO CIVIL. APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE NO CASO DE DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE COLETA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS.
Tem direito a ser indenizada, com base na teoria da perda de uma chance, a criança que, em razão da ausência do preposto da empresa contratada por seus pais para coletar o material no momento do parto, não teve recolhidas as células-tronco embrionárias. No caso, a criança teve frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se eventualmente fosse preciso, fazer uso delas em tratamento de saúde. Não se está diante de situação de dano hipotético - o que não renderia ensejo a indenização - mas de caso claro de aplicação da teoria da perda de uma chance, desenvolvida na França (la perte d’une chance) e denominada na Inglaterra de loss
-of-a-chance. No caso, a responsabilidade é por perda de uma chance por serem as células-tronco, cuja retirada do cordão umbilical deve ocorrer no momento do parto, o grande trunfo da medicina moderna para o tratamento de inúmeras patologias consideradas incuráveis. É possível que o dano final nunca venha a se implementar, bastando que a pessoa recém-nascida seja plenamente saudável, nunca desenvolvendo qualquer doença tratável com a utilização das células-tronco retiradas do seu cordão umbilical. O certo, porém, é que perdeu, definitivamente, a chance de prevenir o tratamento dessas patologias. Essa chance perdida é, portanto, o objeto da indenização. REsp 1.291.247-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/8/2014. (BRASIL, 2014).
Neste trabalho, manifesta-se a concordância com os postulados em questão, afirmando-se que a admissibilidade de uso do direito comparado como fonte jurídica secundária para conflitos surgidos no âmbito nacional, se constituiu um dos fundamentos que possibilitaram aceitação da teoria da perda de uma chance, após longo período de estudos e debates envolvendo as teses surgidas na França e Itália, principalmente.
4.3 Terceiro Argumento: A Inexistência de norma objetiva não impede a ampliação do Instituto da Responsabilidade Civil
Outro argumento que fundamentou a aceitação da teoria da perda de uma chance é o de que a ausência de lei não impede a aplicação deste instituto pelas cortes brasileiras. Em termos práticos, não se vislumbra um maior enfrentamento do aspecto criativo do direito pelos tribunais, de modo a admitir a aplicação de um instituto sem previsão jurídica.
Entretanto, isto não se configurou como óbice à instituição da teoria, que estabeleceu parâmetros hermenêuticos extensivos para sua adaptação, como se vê do julgado a seguir, do colendo STJ.
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE PARA A APURAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OCASIONADA POR ERRO MÉDICO.
A teoria da perda de uma chance pode ser utilizada como critério para a apuração de responsabilidade civil ocasionada por erro médico na hipótese em que o erro tenha reduzido possibilidades concretas e reais de cura de paciente que venha a falecer em razão da doença tratada de maneira inadequada pelo médico. De início, pode-se argumentar ser impossível a aplicação da teoria da perda de uma chance na seara médica, tendo em vista a suposta ausência de nexo causal entre a conduta (o erro do médico) e o dano (lesão gerada pela perda da vida), uma vez que o prejuízo causado pelo óbito da paciente teve como causa direta e imediata a própria doença, e não o erro médico. Assim, alega-se que a referida teoria estaria em confronto claro com a regra insculpida no art. 403 do CC, que veda a indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do réu. Deve-se notar, contudo, que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a paciente. A chance em si - desde que seja concreta, real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou de evitar um prejuízo - é considerada um bem autônomo e perfeitamente reparável. De tal modo, é direto o nexo causal entre a conduta (o erro médico) e o dano (lesão gerada pela perda de bem jurídico autônomo: a chance). Inexistindo, portanto, afronta à regra inserida no art. 403 do CC, mostra-se aplicável a teoria da perda de uma chance aos casos em que o erro médico tenha reduzido chances concretas e reais que poderiam ter sido postas à disposição da paciente. REsp 1.254.141-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012. (BRASIL, 2012).
Aduz-se a respeito deste instituto, que:
O momento atual se caracteriza pela ebulição da teoria da perda de uma chance em alguns tribunais brasileiros. A sólida jurisprudência do tribunal gaúcho, tribunal de justiça do Rio de Janeiro e o tribunal de alçada do Paraná, entre outros, passa a conferir caráter nacional ao movimento de aceitação da teoria da perda de uma chance, considerada como instrumento útil para o deslinde das ações de reparação de danos (SILVA, 2015).
O que se observa, em termos práticos, é que a perda de uma chance tem sido interpretada como uma modalidade de reparação de um dano provável, conforme este argumento, o que, de outro lado, não a descaracteriza como espécie de responsabilidade civil. Ainda assim, trata-se de tecnologia de interpretação extensiva de um dispositivo legal que não trata diretamente do assunto, permitindo que a questão da ausência de dispositivo expresso sobre o assunto impeça sua efetiva aplicação no país.
4.4 Quarto Argumento: A Teoria como Saneamento de lacuna legal
Por conseguinte, um quarto e último argumento que possibilita a aceitação da teoria da perda de uma chance é o de que a mesma surgiria como mecanismo para sanar algumas lacunas existentes na legislação brasileira.
Em julgamento envolvendo questões contratuais e a hipótese de indenização a partir da teoria da perda de uma chance, assim foi propugnado em sede de voto vencedor:
O recurso ao costume jurídico, também denominado direito costumeiro ou consuetudinário, em nosso sistema é um método de integração supletiva das lacunas da lei; uma fonte de direito que segundo a escola positivista só pode ser aplicada quando a lei for omissa. É um direito social suscetível de percepção que se manifesta pela reiteração na observância por determinado grupo de pessoas que o concebem como imperativo (Apelação nº 1019799-52.2013.8.26.0100 - São Paulo - Voto nº 7910 – LEAS). (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013).
Claramente, vê-se que a teoria foi utilizada (de maneira conjunta aos demais argumentos já destacados) como uma justa forma de sanar lacuna existente no ordenamento jurídico pátrio, e, assim, propiciar uma tutela plausível a um caso concreto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Surgida na França, a teoria da perda de uma chance ganhou espaço em países da Europa (especialmente, a Itália), ganhando destaque em julgados de vários países, inclusive, do Brasil. No país, como visto, o instituto já é substancialmente aceito, a despeito da total ausência de previsão legal específica nas legislações pertinentes.
Basicamente, a teoria da perda de uma chance ocorre quando há a necessidade de reparação decorrente de ação ou omissão do agente que lhe furta à vítima a chance de obter determinado resultado ou vantagem, sendo esta séria e muito provável de ocorrer.
Na análise dos argumentos que subsidiaram sua aplicação no Brasil, fundamentalmente, foram encontrados 4 (quatro) espécies de fundamentos jurídicos que importam em sua aceitação e aplicação concreta: a) A teoria da perda de uma chance enquanto espécie de responsabilidade civil (consolidada pelo STJ); b) A aplicação analógica do direito estrangeiro para aceitação da teoria no Brasil; c) A aplicação analógica de normas do ordenamento, superando a ausência de previsão expressa; e, d) A aplicação da teoria como forma de saneamento de lacunas da lei. Em suma, foram identificados argumentos jurídicos além daqueles inicialmente concebidos pela hipótese do estudo.
Por óbvio, pelo caráter relativamente breve deste estudo, não foi possível a realização de investigações hermenêuticas mais aprofundadas dos julgados e posicionamentos das autoridades envolvidas. Contudo, dada a importância da teoria e sua aplicação consolidada no país, encerra-se essa análise com a sugestão de aprofundamento específico no caráter histórico e nas correntes especificas implícitas (ou não) na opinião dos julgadores.
REFERÊNCIAS
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