Neoliberalismo e expansão do ensino superior: os cursos de direito
Neoliberalism and expansion of higher education: the law schools
Guilherme Benette Jeronymo1
1 Universidade Estadual do Centro Oeste, Brasil, Doutorado em Educação, e-mail: guilherme@unicentro.br
Recebido em: 31/08/2021 - Revisado em: 17/10/2021 - Aprovado em: 20/12/2021 - Disponível em: 01/01/2022
Resumo
A expansão do Ensino Superior, aliada às políticas inclusivas de acesso ao Ensino Superior, como PROUNI, FIES e as políticas de cotas, tem permitido e facilitado o ingresso às faculdades e universidades do país por parte de novos públicos, oriundos de camadas sociais mais populares, inclusive, em cursos antes tidos como de alta seletividade, como o de Direito, e que tradicionalmente eram cursados por alunos provenientes das classes dominantes. Os cursos de Direito têm atraído um expressivo número de estudantes, considerando-se o número de matrículas, de concluintes e de vagas. A pesquisa, de cunho documental, busca, utilizando-se como método o materialismo histórico dialético, analisar como ocorreu, no contexto das reformas neoliberais do Ensino Superior, entre os anos 1995 e 2017, o processo de expansão da oferta dos cursos de Direito no Brasil e seus possíveis reflexos sobre os egressos desses cursos, de origem popular, no acesso às carreiras jurídicas. Da pesquisa concluiu-se que, as disposições de classe dos estudantes, seus capitais culturais, econômicos e sociais, acabam por ser determinantes em suas trajetórias inclusivas ou excludentes no universo profissional das carreiras jurídicas, de modo que eventuais ingressos de sujeitos de classes populares em carreiras jurídicas são excepcionalidades determinadas por fatores e oportunidades que os colocam à parte da grande maioria dos sujeitos de sua classe, uma vez que a expansão da oferta de cursos de Direito reproduz ideologicamente o modo de produção capitalista, restringindo a margem de possibilidades desses sujeitos, aparentando, assim, ser uma política socialmente inclusiva, quando na realidade é excludente.
Palavras-Chave: Neoliberalismo, Ensino Superior, Cursos de Direito
Abstract
The expansion of Higher Education, combined with inclusive access policies to Higher Education, such as PROUNI, FIES and quota policies has allowed and facilitated the entrance by new audiences to the country’s colleges and universities, coming from more popular social strata even in courses previously considered highly selective, such as Law, and which were traditionally accomplished by students from the dominant classes. Law Schools have attracted a significant number of students, considering the number of enrollments, graduates and vacancies. The research, of bibliographic nature, seeks, using the dialectical historical materialism as method analyze how happened, in the context of the neoliberals Higher Education reforms, between the years 1995 and 2017, the expansion process of the offer of Law Schools in Brazil and its possible reflexes on the graduates of these courses, of popular origin, in the access to legal careers. From the research it was concluded that the class dispositions of the students, their cultural, economic and social capital, are decisive in their inclusive or excluding trajectories in the professional universe of the legal careers, so that eventual entry of subjects from popular classes into legal careers are exceptionalities determined by factors and opportunities that set them apart from the vast majority of subjects in their class, since the expansion of the offer of Law School reproduces ideologically the capitalist mode of production, restricting the scope of possibilities of these subjects, thus appearing to be a socially inclusive policy, when in reality it is exclusive.
Keywords: Neoliberalism, Higher Education, Law Schools
1. INTRODUÇÃO
Em que pese à importância das políticas e reformas operadas na Educação Superior no Brasil ao longo de sua história, nenhuma delas se deu com tamanha relevância, especificamente do ponto de vista quantitativo e mercantil, como a ocorrida a partir de meados dos anos 1990. Tão logo a Constituição Federal de 1988 havia sido promulgada, e alguns anos após, os direitos historicamente conquistados e nela garantidos passaram a ser progressivamente desmontados pelos sucessivos governos em virtude da adoção de medidas de cunho neoliberal, após anos de ditadura militar. O resultado disso foi uma colossal submissão à lógica de mercado, fazendo com que as políticas sociais passassem a se estabelecer de forma focalizada, seletiva, além de, frequentemente, pautadas por interesses privados. Sguissardi (2015, p. 875) enfatiza que
Esse processo de transformação de um direito ou serviço público em serviço comercial ou mercadoria, como já sinalizado, dá-se no interior de um Estado reformado para conformar-se ao ajuste ultraliberal da economia; de um Estado que não é sinônimo de interesses públicos, mas que tende a representar de modo prioritário os interesses privado-mercantis.
Assim como em outras áreas, as políticas para a educação têm se dirigido intensamente ao redor dos interesses mercantis e privatistas, especialmente no Ensino Superior. Segundo Lima (2007), o processo de expansão do Ensino Superior, ocorrido a partir dos anos 1990, desenvolveu-se por meio de uma nova racionalidade, cujos objetivos principais foram: o estímulo ao seu empresariamento e a privatização interna das instituições públicas. Nota-se que, para essa autora, as mudanças ocorridas no âmbito da Educação Superior no Brasil se deram em um momento por ela denominado contrarrevolução neoliberal, uma vez que o projeto neoliberal vem sendo implantado pelos diversos governos, atendendo aos interesses do capital privado em prejuízo às necessidades da classe trabalhadora. Ressalta-se que, como afirma Sguissardi (2000, p. 8), “em cada país, a educação superior foi e será chamada a exercer determinados papéis, de acordo com a própria história e avanços sócio-democráticos desses países e de seu sistema educacional”.
Para Gentili (1995), as estratégias utilizadas por esse projeto político-ideológico têm o objetivo de enfraquecer a escola pública e se dão por meio de mecanismos de construção de novas concepções culturais que visam a desqualificar ideologicamente a possibilidade da efetivação de uma educação pública de qualidade e democrática.
De acordo com dados do Ministério da Educação, observa-se a expansão da oferta de vagas no Ensino Superior nas últimas duas décadas, especialmente as da rede privada. Em 1995 havia aproximadamente 600.000 (seiscentas mil) vagas em todo país (432.000 aproximadamente em instituições privadas, ou seja, 72%). Apenas vinte anos depois, em 2015, o total de vagas saltou para mais de 6.000.000 (seis milhões), ou seja, aproximadamente 900% de aumento. Dessas seis milhões de vagas, mais de 5.500.000 (cinco milhões e quinhentas mil), ou seja, mais de 90%, são de instituições privadas (INEP, 2018).
Entende-se que a expansão do Ensino Superior, aliada às políticas inclusivas de acesso ao Ensino Superior, como PROUNI, FIES e as políticas de cotas, tem permitido e facilitado o ingresso às faculdades e universidades do país por parte de novos públicos, oriundos de camadas sociais mais populares, inclusive, em cursos antes tidos como de alta seletividade, como o de Direito, e que tradicionalmente eram cursados por alunos provenientes das classes dominantes.
Os cursos de Direito têm atraído um expressivo número de estudantes, considerando-se o número de matrículas, de concluintes e de vagas (INEP, 2016). Trata-se de um novo mundo composto por pessoas que não têm, na sua origem social, qualquer vinculação com o Ensino Superior, muito menos ainda com a chamada tradição jurídica. No senso comum, a principal razão apontada para essa atração é o fato de ser um curso que oferece uma gama de possibilidades de atuação: advocacia liberal, magistratura, Ministério Público, advocacia pública, procuradorias, polícia civil (delegados) e inúmeras funções de nível superior no Estado.
Além disso, ter o Estado atuando como forte contratante de pessoal de nível superior, a possibilidade de ter emprego com estabilidade e com remuneração acima do mercado, seja nas chamadas carreiras de Estado exclusivas de bacharéis de Direito (juízes, promotores, delegados, advogados públicos), seja em funções administrativas com estabilidade e remuneração acima do mercado, pode fazer com que as carreiras públicas se tornem uma importante variável no momento da escolha do estudante.
Mas, se de um lado o Estado é uma forte alternativa como grande contratante de pessoal diplomado com nível superior, o estudante e candidato a advogado pode experimentar a constatação de que a expansão das vagas e das Instituições de Educação Superior (IES) provoca intensa concorrência no interior de seu grupo profissional, haja vista que outros estudantes buscam o mesmo sonho de obter o passaporte para uma formação que oferece uma boa amplitude de opção de carreira.
Os estudantes de Direito de camadas populares assimilam a realização do Ensino Superior como uma estratégia para enfrentar as adversidades inerentes à sua origem social, buscando evitar, assim, a exclusão. Entretanto, ao concluírem o curso, muitas questões ficam em aberto quanto às possibilidades efetivas que encontrarão no tocante às suas inserções no campo profissional específico do Direito, pois suas disposições de classe – capital cultural, econômico e social – podem ser determinantes. Esse capital cultural, conforme apontado por Hey, Catani e Medeiros (2018, p. 172), era enfatizado por Bourdieu, entre outros estudiosos, no decurso dos anos 1960 e 1970 e no âmbito da Sociologia da Educação, como parte de uma reflexão que envolve “apropriação e distribuição desigual entre as classes”. A educação, em si mesma, é entendida como objeto sociológico. Nessa mesma direção, Azevedo e Catani (2013, p. 274) declaram que
[...] a circulação de ideias e a educação, inclusive a superior, necessariamente, implicam em compartilhamento de cultura e de conhecimento. Isso pode ocorrer tanto em nível restrito, para as elites, quanto de maneira ampla, sem discriminação de classes; tanto em plano nacional, com vista à unificação, como internacional, para a promoção da solidariedade entre os povos.
Assim, a principal questão que se impõe referentemente à temática desta pesquisa é saber como se dá a relação do processo de expansão do Ensino Superior em Direito com as perspectivas profissionais de estudantes oriundos de classes populares. Mais especificamente, a expansão do ingresso nos cursos de Direito caminha em direção a uma política de democratização e inclusão de estudantes de classes populares nas carreiras jurídicas? Tal situação impõe relevantes questões que merecem ser criticamente estudadas, para a compreensão das reais razões que levaram ao desenvolvimento de todo esse processo.
Diante disso, o presente estudo busca demonstrar que, ao mesmo tempo em que um número cada vez maior de estudantes originários das camadas populares passou a ter acesso à formação em Direito, produz-se um processo que Kuenzer (2005) denomina de “exclusão includente” e “inclusão excludente”, ou seja, um movimento dialético que inclui esses estudantes num ensino superior em direito sem as qualidades necessárias para sua formação humana e para o acesso às carreiras jurídicas, e, em contrapartida, os exclui ou precariza as condições de suas relações no mercado de trabalho.
Segundo Kuenzer:
[...] está em curso um processo que pode ser caracterizado como “exclusão includente”. Ou seja, no mercado identificam-se várias estratégias de exclusão do mercado formal, onde o trabalhador tinha direitos assegurados e melhores condições de trabalho, acompanhadas de estratégias de inclusão no mundo do trabalho através de formas precárias. Assim é que trabalhadores são desempregados e re-empregados com salários mais baixos, mesmo que com carteira assinada; ou re-integrados ao mundo do trabalho através de empresas terceirizadas prestando os mesmos serviços; ou prestando serviços na informalidade, de modo que o setor reestruturado se alimenta e mantém sua competitividade através do trabalho precarizado.
A esta lógica, que estamos chamando de exclusão includente, corresponde outra lógica, equivalente e em direção contrária, do ponto de vista da educação, ou seja, a ela dialeticamente relacionada: a inclusão excludente, ou seja, as estratégias de inclusão nos diversos níveis e modalidades da educação escolar aos quais não correspondam os necessários padrões de qualidade que permitam a formação de identidades autônomas intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas do capitalismo (KUENZER, 2005, p. 92-93).
O dilema da democratização ou massificação mercantil somente pode ser entendido mediante a análise de “como se têm dado o acesso à educação superior, a permanência até o final dos estudos e o sucesso ou insucesso dos titulados no mercado de trabalho” (SGUISSARDI, 2015, p. 877). Ademais,
As novas faces da educação superior no Brasil não parecem fadadas a garantir um avanço significativo da educação pública e da inclusão social; ao contrário, tendem a aprofundar a apartação social entre a minoria incluída e a maioria dos cada vez mais excluídos da sociedade da informação (SILVA JÚNIOR & SGUISSARDI, 2000, p. 52).
Assim, a presente pesquisa tem como objetivo analisar como ocorreu, no contexto das reformas neoliberais do Ensino Superior, entre os anos 1995 e 2017, o processo de expansão da oferta dos cursos de Direito no Brasil e seus possíveis reflexos sobre os egressos desses cursos, de origem popular, no acesso às carreiras jurídicas.
O recorte temporal 1995/2017 justifica-se em razão de o termo inicial (1995) marcar um momento em que as políticas neoliberais começam a ganhar força no Brasil e, especificamente no interesse desta pesquisa, tem-se fortemente o processo de expansão do ensino superior, especialmente do setor privado. A adoção do termo final (2017) se deu em virtude de, após passados 22 anos do termo inicial, ser possível analisar consistentemente a consolidação de todo esse processo expansivo, bem como suas consequências em relação aos egressos dos cursos de Direito de classes populares.
Diante do movimento dialético inclusão/exclusão, objeto desse estudo, utilizou-se como referencial metodológico o materialismo histórico dialético, tendo em vista as contradições presentes nesse processo, bem como a sua necessária relação com as condições materiais e históricas dos sujeitos da pesquisa.
Martins (1997) explica em sua obra “Exclusão social e a nova desigualdade”, que o termo exclusão social é muitas vezes tratado de maneira equivocada, pois este processo não deve ser visto como algo que retira dos sujeitos direitos ou os empurram “pra fora” das relações sociais. Ao contrário, é um movimento que inclui os excluídos, porém em condições de subalternidade, precariedade, como reprodutores mecânicos de um sistema, que não protestem e nem reivindiquem perante às carências, privações e injustiças sociais (MARTINS, 1997, p. 17).
a) busca compreender a natureza das determinações sócio-ontológicas para delimitar os desafios educacionais para a superação da produção capitalista; b) procura captar as determinações mais universais que surgem do sistema orgânico do capital com suas contradições no campo ético, científico, cultural, político e educacional; c) propõe uma análise das políticas a partir de uma totalidade social (gênese, desenvolvimento, contradições e relações), tratando a política educacional em seu contexto histórico e não em seu aparente isolamento (CAMARGO, 2018, p. 11).
A complexidade das relações sociais e econômico-políticas e suas contradições no campo educacional faz do materialismo histórico dialético um instrumento metodológico privilegiado para a pesquisa científica em educação.
2. A EXPANSÃO DOS CURSOS JURÍDICOS – 1995/2017
Segundo Martínez (2006), no início da década de 90 havia 186 cursos espalhados pelo Brasil que mantinham a mesma estrutura curricular tradicional oriunda da reforma de 1973, cujo resultado era um ensino reprodutor, deformador e insatisfatório na formação de bacharéis para um mercado que já se encontrava em vias de saturação.
A Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, órgão licenciador, fiscalizador e representativo da categoria dos profissionais de direito no país, tem constantemente afirmado que o crescimento do número de instituições ofertantes de cursos de direito tem causado a queda na qualidade dos cursos e consequentemente da formação dos profissionais de direito no país. Assim, desde o ano de 2001, a OAB vem editando um trabalho sob o título de OAB Recomenda, que visa a dar um selo de qualidade para as IES que atendam aos requisitos do que entende ser pressuposto de qualidade. Na edição 2012 de seu selo de qualidade a OAB afirma que os cursos de direito incharam e viraram um grande negócio. Segundo aponta esse indicador:
[...] em 1991 os cursos jurídicos no Brasil eram 165; em 2001 (no primeiro retrato do OAB RECOMENDA) passaram para 380; em 2004 (segunda versão do OAB RECOMENDA) eram 733; em 2007 (terceira edição do OAB RECOMENDA) somavam 1.046; e em 2011, data desta quarta edição, já totalizaram 1.210 cursos de graduação em direito no país. [...] Na dança dessa grandiosidade de cursos de direito hoje existentes resulta lógico e inafastável proporcional decréscimo na qualidade (OAB, 2012).
Após a implementação da LDB de 1996, houve um forte estímulo para a abertura de novas IES privadas que se destinaram intensamente à criação de cursos com custo/benefício mais vantajoso financeiramente, cuja necessidade de implementação não exigia grandes investimentos, especialmente em estrutura física, laboratórios etc., e que, além disso, apresentam uma área de atuação profissional ampla e versátil, como Pedagogia, Administração e Direito. Um bacharelado de direito, por exemplo, oferece a possibilidade de atuação como advogado, assessor empresarial, além de uma vasta gama de carreiras acessíveis por meio de concursos públicos. Esse pode ter sido um dos fatores que impulsionou o aumento da demanda nos processos seletivos, associado à ideia de ascensão e poder social, de prestígio que o próprio curso de direito já carregava historicamente. A graduação de direito não apenas se torna fácil em termos de instalação para as IES, mas ela tem um apelo bastante forte, devido ao ideal desse prestígio que exerce sobre os futuros estudantes, por isso foi muito mais explorado o curso pelas empresas educacionais (CRUVINEL, 2008).
Cruvinel (2008) aponta para o fato de que o governo assumido no ano de 1994 adotou medidas de corte orçamentário e contenção de investimentos para as IES públicas, o que gerou um sucateamento da Educação Superior pública, principalmente estagnando a oferta de vagas. Esse processo, por sua parte, fez avançar a educação privada, e o curso de direito acaba sendo visto como uma mercadoria interessante, cuja alta demanda e o baixo custo de infraestrutura alavancaram um crescimento de 309% entre os anos de 1995 e 2002, ao passo que a oferta do curso, no setor público cresceu 139%.
De 1995 a 2017, houve um aumento de 512% na oferta de cursos de direito, sendo que, 70% foi proveniente de IES pública e 662% de IES privada. Ademais, há que se considerar que a distribuição dessas instituições não é, em absoluto, equilibrada, indicando-se que seguem a demanda local. Em São Paulo há 170 IES que oferecem direito (159 privadas), em Minas Gerais há 133 (124 privadas), e no Paraná, 74 (66 privadas); enquanto em Roraima há 4 (2 privadas), em Amapá, 6 (5 privadas), e em Sergipe, 9 (8 privadas) (INEP, 2018).
É interessante observar que, conforme os dados anteriormente apresentados da OAB, a Ordem confirmou a existência de 1.210 curso em 2011, e os dados de 2017 do INEP indicam 1.203 cursos no país, apontando-se para um período decrescente de cursos. Entretanto, não houve redução na quantidade de matrículas efetuadas. Em 2011, foram 737.271, e em 2017, 879.234 (INEP, 2018).
Segundo Góes Junior (2010), a partir da criação de programas de concessão de bolsas como PROUNI, de financiamentos como o FIES, ou de programas de expansão de acesso às Federais, o Reuni, deu-se outra reestruturação do Ensino Superior, e, embora tenha se fundamentado no discurso dos Direito Humanos e do direito de acesso à educação, existe uma confusão entre a justiça social e a responsabilidade na formação, ignorando-se essa última em função da primeira, atrelada à ideia de que o acesso à Educação Superior é a justiça social, e desconsiderando, portanto, a maneira como se dá a formação.
O maior aumento dos cursos ofertados de direito aconteceu entre os anos de 1995 e 2006, um aumento de 736 ofertas em 11 anos, enquanto de 2006 a 2017, também 11 anos, houve aumento de mais 232 cursos no total das IES. No que tange à oferta por parte das IES privadas, nos 11 primeiros anos, o aumento foi de 687, e 196 nos anos subsequentes. Isso pode indicar que o fomento das políticas públicas de acesso ao Ensino Superior, especialmente os projetos mencionados, modificaram consideravelmente o cenário das IES (INEP, 2018).
Sousa e Rocha (2016) apontam que as IES privadas são responsáveis por formar quase 90% dos bacharéis em direito no Brasil, e que não há nenhuma dúvida de que o aumento do número de estudantes se relaciona com essa oferta privada. Ainda assim, esse crescimento exorbitante não está somente atrelado a essa oferta, mas fundamentalmente às facilidades estabelecidas na LDB de 1996, que removeram os empecilhos de criação de novas IES e aos programas e às políticas públicas com seus incentivos governamentais.
É importante frisar que, desde que a proposta de criação do PROUNI foi divulgada, esse Programa vem suscitando análises que questionam sua legitimidade. No que concerne, por exemplo, ao processo de tramitação, é importante destacar que durante o período em que o Projeto de Lei tramitou no Congresso até tornar-se a Lei do PROUNI, o Programa sofreu diversas alterações fortemente influenciadas pelas IES privadas e suas entidades representativas, tendo em vista os interesses dos empresários do ensino superior. De acordo com Catani; Hey & Gilioli (2006, p. 127), no ano de 2002 a rede privada de ensino superior tinha uma taxa de 35% de vagas ociosas. No ano de 2003, esse número elevou-se para 42%, atingindo os 49,5% no ano de 2004. É praticamente impossível desvincular a idealização do PROUNI da ideia de “salvação” das Instituições de Ensino Superior privadas. Nesse mesmo sentido, Carvalho (2011; p. 314-315) assinala que o PROUNI apresentou-se como uma espécie de “válvula de escape”, pois, além de propor uma solução ao problema da ociosidade de vagas, as instituições ainda recebiam isenção tributária pelo oferecimento de bolsas de estudo integrais e parciais.
Além de atender às demandas reivindicadas pelos empresários do ensino superior, vale mencionar que o PROUNI foi gestado no bojo das discussões referentes às ações afirmativas: um programa que surge como uma saída do governo para o atendimento da população com baixo poder socioeconômico, compatibilizando-se assim, com as demandas que estavam sendo reclamadas por diversos grupos sociais.
Com relação às bolsas destinadas às políticas afirmativas, Carvalho (2006) considera que:
Tais medidas corroboram com os interesses de parte da sociedade civil, dos movimentos sociais em prol das ações afirmativas, bem como dos egressos do ensino médio público, por não se considerarem uma demanda potencial às instituições públicas frente às barreiras impostas pelos exames vestibulares (CARVALHO, 2006, p. 985).
O PROUNI, enquanto um programa que reserva vagas para determinados grupos sociais em Instituições de Ensino Superior privadas, surge então, como um passo importante para compensação de perdas históricas desses grupos, uma vez que a lei sancionada determinou que as IES privadas que aderissem ao programa deveriam oferecer bolsas com base em cotas étnicas, além das bolsas para estudantes provenientes de famílias de baixa renda e egressos de escolas públicas.
Desse modo, ocorre uma grande aceitação e até satisfação pela sociedade em geral, no que se refere a essas políticas de expansão do ensino superior. Esse fato pode ser explicado pela potencial condição de beneficiária, por parte da população, da sociedade, e também pelo forte apelo ideológico contido nos discursos governamentais e propagandas do Programa. No caso do PROUNI e do REUNI, por exemplo, a palavra democratização, seguida por outras expressões, tais como justiça social, igualdade de oportunidades, etc., foi o elemento central desses discursos.
Catani, Hey e Gilioli (2006; p. 137) consideram que o PROUNI, até enquanto política assistencialista é fraco, uma vez que credita às IES privadas a responsabilidade da formação do estudante e a sua manutenção na instituição, fato este distante da realidade dessas instituições.
(...) as camadas de baixa renda não necessitam apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condições que apenas as instituições públicas, ainda, podem oferecer, como: transporte, moradia estudantil, alimentação subsidiada, assistência médica disponível nos hospitais universitários e bolsas de trabalho e pesquisa (CARVALHO, 2006; p. 994).
Para cumprir a meta proposta pelo Plano Nacional de Educação, o Ministério da Educação, ao criar PROUNI e fazer dele uma ferramenta para alcançar essa meta, optou por uma política assistencialista (concessão de benefícios) ao invés de promover os direitos dos cidadãos de terem acesso a uma educação pública, gratuita e de qualidade. Em outras palavras, tal programa traz consigo uma concepção assistencialista, que oferece benefícios e não direitos aos egressos do ensino médio, uma vez que promove o acesso, mas não a permanência do aluno no curso e a conclusão deste último (CARVALHO, 2006).
Cunha (2007) indica que o PROUNI é um claro exemplo de incentivo do setor público à expansão da rede privada de ensino superior. Tendo em vista essa linha tênue existente entre o que é público e o que é privado, Mancebo (2004) diz que:
(...) deve-se insistir no aspecto privatizante do PROUNI, porque delega responsabilidades públicas para entidades privadas e, mesmo que os alunos não paguem mensalidades, contribui para o aumento da oferta privada nesse campo.
Na própria justificativa do Projeto de Lei, apresentado no site do MEC, é transparente a ideia de que “o “Universidade para Todos” está inserido [num] esforço de mudança de rumos, criando uma nova relação entre o setor público e privado” (BRASIL/MEC, 2004, p. 2), melhor dito, promovendo um embaralhamento das barreiras entre o público e o privado (MANCEBO, 2004; p. 853).
A diferenciação entre as instituições existentes dentro do próprio segmento privado, que foi regulamentada através do Decreto nº 2.306/1997, é também outra questão a ser considerada em meio aos debates sobre o PROUNI. A verdade é que as instituições privadas com fins lucrativos obtiveram mais vantagens com o PROUNI que as filantrópicas, na medida em que aquelas devem oferecer uma bolsa integral a cada 10,7 alunos pagantes ou conceder uma bolsa integral a cada 22 estudantes e bolsas parciais até atingir uma receita bruta igual a 8,5%. E as filantrópicas são obrigadas a oferecer 20% da receita anual em forma de bolsas. As IES confessionais/comunitárias, por exemplo, deixam de recolher o PIS (Programa de Integração Social) – que tem baixo impacto sobre a rentabilidade – e a CONFINS (Contribuição Para o Financiamento da Seguridade Social). A isenção do COFINS, entretanto, incentiva o aumento do número de matrículas o que gera um aumento nos ganhos dessas instituições. Já no caso das instituições filantrópicas, essas são obrigadas a conceder bolsas integrais e parciais, no valor de 20% da receita anual, mesmo já estando isentas de uma carga tributária considerável, enquanto que as primeiras lucram com essa isenção (CARVALHO, 2006; p 987; CATANI & HEY, 2007; p. 58).
A partir da criação do PROUNI, as filantrópicas deixaram de recolher apenas o PIS que, como já sinalizado anteriormente, não interfere de maneira significativa nos ganhos das instituições. Fica claro, então, que as IES com fins lucrativos se beneficiam da isenção prevista pelo PROUNI em detrimento das IES sem fins lucrativos, especialmente as filantrópicas.
Segundo Mancebo (2004):
(...) longe de resolver ou de corrigir a distribuição desigual dos bens educacionais, a privatização promovida pelo programa tende a aprofundar as condições históricas de discriminação e de negação do direito à educação superior a que são submetidos os setores populares. A alocação dos estudantes pobres nas instituições particulares cristalizará mais ainda a dinâmica de segmentação e diferenciação no sistema escolar, destinando escolas academicamente superiores para os que passarem nos vestibulares das instituições públicas e escolas academicamente mais fracas, salvo exceções, para os pobres (MANCEBO, 2004; p. 86).
Para cumprir a meta proposta pelo PNE, o MEC optou por uma política assistencialista, de concessão de benefícios, através da qual a educação ganha, mais uma vez, o status de bem público, ao invés de direito social, dotada de um caráter público, gratuito e de qualidade.
A política assistencialista do MEC não leva necessariamente à democratização da educação superior, pois a destinação dos alunos bolsistas para os cursos, bem como para as IES privadas, contribui para uma diferenciação no sistema escolar, na medida em que suas formações e seus diplomas serão menos valorizados pelo fato de ingressarem em instituições de menor qualidade. Nesse sentido, vale destacar a fala de Catani & Hey (2007), quando apontam a
(...) naturalização da educação superior para camadas menos privilegiadas da população em instituições de segunda categoria. As classes mais favorecidas continuam sendo atendidas em universidades de primeira linha.
As políticas de ampliação do acesso à educação superior são vistas como sinônimo de acesso ao sistema conforme a posição de classe de cada um: aos bem nascidos garante-se educação de alta qualidade e, aos despossuídos, garante-se o acesso – nem mesmo a permanência – às instituições e aos cursos menos prestigiados (CATANI & HEY, 2007; p. 425).
Carvalho (2006) esclarece que, mesmo com a criação e implementação do PROUNI, a problemática do acesso ao ensino superior permanece sem uma solução claramente definida. Ela afirma que,
Considerando-se sua legitimidade social, o programa pode trazer o benefício simbólico do diploma àqueles que conseguirem permanecer no sistema e, talvez, uma chance real de ascensão social para poucos que estudaram no seleto grupo de instituições privadas de qualidade. Mas, para a maioria, cuja porta de entrada encontra-se em estabelecimentos lucrativos e com pouca tradição no setor educacional, o programa pode ser apenas uma ilusão e/ou uma promessa não cumprida. Ademais, a gratuidade integral ou parcial para estudar não é suficiente para seus beneficiários, os quais necessitam de assistência estudantil que apenas as instituições públicas ainda podem oferecer (CARVALHO, 2006; p. 995-996).
A crescente facilitação do acesso ao Ensino Superior no Brasil, que, como já foi demonstrado, é fruto das políticas neoliberais no país, trouxe um contingente antes afastado da vida universitária, e, segundo Siqueira (2018), com a explosão de IES, que não estabeleceram nem de longe o que eram os moldes do antigo vestibular, aconteceu uma massificação do ensino jurídico, carregando uma bandeira de democratização, e o Ministério da Educação, não tendo meios suficientes para estabelecer uma fiscalização eficiente, mas, ao mesmo tempo, vendo-se obrigado a aportar números para os órgãos internacionais, a fim de conseguir financiamentos, acaba ignorando que o grande e desejado aumento do acesso ao Ensino Superior representa um dado quantitativo, preferindo ocultar que na maioria das vezes esses dados não são qualitativos. Ainda conforme Siqueira (2018), o único resultado possível para isso é o alto índice de reprovação no exame da Ordem, a proliferação de verdadeiros analfabetos funcionais diplomados, e, sobretudo, um número exorbitante de instituições educacionais que apenas pretendem a obtenção de lucro, e cujo recrutamento de professores tende cada vez mais à precariedade.
Nos séculos anteriores, a formação nos cursos de direito tinha uma direção exata para aqueles que se formavam; ou seja, já possuíam no ingresso uma perspectiva da sua futura vida profissional, atrelada à política e à administração pública, mas, após as transformações ocorridas no Brasil com a República Nova até a adoção das políticas neoliberais nos anos 1990, o “novo bacharelismo” (SOUSA e ROCHA, 2016) do final do século XX e início do século XXI, se relacionou muito mais com a abertura do mercado para as novas IES, e isso inclui a estrutura física básica necessária para a oferta de cursos. Se esses novos profissionais do direito assumem ou não cargos em suas áreas de atuação não é o mais importante para as faculdades que os formam, e tão pouco para a própria Ordem dos Advogados do Brasil. Essa expansão de oferta, assim, não significa mais a carreira confortável, mas um risco de concluir os estudos sem chegar à atuação profissional efetiva.
Cabe apontar, como afirmam Bourdieu e Champagne (2007), que são limitadas as chances de crianças e jovens oriundos das classes populares terem acesso a uma educação que sempre foi dada às elites, pois, na medida em que politica e ideologicamente se estimula a suposta democratização da educação, quando essa população entra em um campo ou nível de ensino que historicamente nunca lhes foi acessível, passam a ocorrer processos que provocam questionamentos acerca do valor simbólico e econômico dos títulos conferidos. Ou seja, quando uma formação que era desejada para se alcançar uma melhor posição na sociedade - melhores ocupações, salários, etc. - passa a ser acessada pelas classes populares, essa formação torna-se desvalorizada e insuficiente e outras novas formações são criadas, fomentadas e acessadas pelas classes dominantes, tornando-se então, estas, objeto de valorização, em detrimento daquelas. No âmbito do ensino jurídico esse movimento se mostra muito acentuado, já que sempre foi um campo formado especificamente para o controle e o poder.
Segundo dados do INEP (2018), no ano de 1995, a relação candidato/vaga geral para os cursos de direito eram de 8,69 candidatos por vaga. No ano de 2017, essa relação caiu para 4,77 candidatos por vaga. No entanto, a relação candidato/vaga para os cursos de direito nas universidades públicas em 1995 era de aproximadamente 22%, e, em 2017, de 24%. Ou seja, apesar da enorme ampliação de oferta de vagas nos cursos de direito, o acesso às melhores instituições tornou-se ainda mais concorrido do que antes da expansão, o que faz com que a formação jurídica de maior qualidade tenha se tornado mais elitizada do que antes.
No ano de 2017, havia 1.202 cursos de direito no Brasil, 160 públicos (137 em universidades; 4 em centros universitários municipais; 18 em faculdades isoladas municipais; e, 1 em Instituto Federal) e 1.042 privados (279 em universidades; 174 em centros universitários; e, 589 em faculdades isoladas). O número de matrículas em 2017 foi de 879.234, sendo 87.385 em IES públicas (73.419 em universidades) e 791.555 em IES privadas (284.802 em Universidades; 173.936 em centros universitários; e, 332.817 em faculdades isoladas). Por fim, o número de estudantes que concluíram o curso de direito no ano de 2016 foi de 113.864, dos quais 13.920 em IES públicas (11.660 em universidades), e 99.793 em privadas (35.081 em universidades; 22.652 em centros universitários e 42.060 em faculdades isoladas) (INEP, 2018).
Conforme indicam os dados acima, mais do que simplesmente haver ocorrido a mercantilização dos cursos de direito no Brasil, o processo expansivo precarizou a formação dos estudantes, especialmente das classe populares, uma vez que, em 2017, do total de concluintes 57% são oriundos de centros universitários ou faculdades isoladas, 30% de universidades privadas e apenas 10% de universidades públicas, enquanto em 1995, 60% eram provenientes de universidades, sendo que 21% formavam-se em universidades públicas (INEP, 2018).
De acordo com o Ranking Universitário Folha – RUF de 2019, dos 20 melhores cursos de direito do Brasil, 14 são de universidades públicas e, os outros 6, de IES privadas sem fins lucrativos, sendo 5 de universidades e 1 de instituição não universitária (FGV-Rio). Esta última, apesar de não universitária é renomadamente reconhecida pelo desenvolvimento e investimento em pesquisas, muito diferentemente da maioria das demais instituições não universitárias e centros universitários. E mais, com base nos exames da OAB dos anos 2015, 2016 e 2017, o RUF (2019) aponta que, das 20 instituições com maiores aprovações nos Exames de Ordem, apenas a FGV-Rio não é universidade pública (RUF, 2019).
Diante disso, não se pode deixar de considerar, que diante da grande concorrência para o ingresso nesses cursos, das trajetórias escolares, dos capitais econômicos, sociais e culturais, os estudantes de classes populares muito excepcionalmente acessam esses cursos, o que os elitizam ainda mais e consequentemente as carreiras jurídicas.
Por causa destes mecanismos, que se somam à lógica da transmissão do capital cultural, as mais altas instituições escolares, e especialmente aquelas que levam às posições de poder econômico e político, permanecem exclusivas como sempre foram. Graças também a estes mecanismos, o sistema de ensino aberto a ·todos, e ao mesmo tempo estritamente reservado a poucos, consegue a façanha de reunir as aparências da “democratização” e a realidade da reprodução, que se realiza num grau superior de dissimulação, e por isso com um efeito maior ainda de legitimação social (BOURDIEU, 2008, p. 485).
Ou seja, o sistema é formado dentro de uma perspectiva reprodutivista e desigual, e, embora a desigualdade se dê em níveis diferentes, em qualquer ocasião, ela é reflexo da ausência da democracia. Leão e Barreto (2011), por sua parte, ressaltam que a questão da democratização no âmbito jurídico perpassa a formação dos novos bacharéis, que deveriam ser preparados sob uma nova perspectiva, e não mais dentro do modelo reprodutivista, que apenas perpetua o aspecto excludente e elitista do universo jurídico. Segundo as autoras, perpetuam-se, ademais, dicotomias como responsabilidade técnico-contratual e social, ensino teórico e prático, formação humanística e tecnicista. A investigação apresentou dados indicativos da insatisfação dos estudantes acerca dos cursos de direito, especialmente no que tange ao comportamento dos professores e à metodologia de aula, assim como sua aparente falta de compromisso e de diálogo. É como se os professores, tendo eles mesmos sido oprimidos pelo sistema, a ele se adaptaram e simplesmente repetem aquilo que aprenderam, sem qualquer intenção de modificar o cenário do ensino jurídico e da cultura jurídica nacional, sempre repetindo o arquétipo liberal. Nesse sentido,
No Brasil do século XXI percebem-se as dificuldades no ensino jurídico em um prisma relacionado com o aumento da demanda e do número de vagas, com a crescente heterogeneidade deste público que acessa a faculdade de direito. Esta ampliação tem justificativa no texto constitucional, que prevê, no que tange à educação superior, o dever do Estado em garantir o acesso a níveis mais elevados de ensino (MOURA & PEREIRA, 2007, p. 1189).
Leão e Barreto (2011) relatam que os estudantes de direito veem seus anseios de fazer justiça, de alcançar uma remuneração digna, frustrados no decorrer do curso, e são, muitas vezes, desestimulados. É natural que entendam que o que imaginaram não passava de utopia. Assim, após a formatura, diante das necessidades da vida, deixam os antigos planos para se adaptarem ao status quo que lhes cabe. Acusam as autoras de o curso se voltar apenas para o exame da Ordem, o que fomenta ainda mais a formação tecnicista, e a prática jurídica no decorrer do curso apresenta uma defasagem ainda mais gritante. O estudante não se depara com as demandas sociais, com a investigação crítica do próprio direito, e se forma repetindo teorias antigas, sem questioná-las. Alterar as grades curriculares, para as autoras, não seria necessário, se houvesse a mudança na mentalidade dos atores educacionais dos cursos de direito, e a vontade de formar bacharéis críticos e capazes de aproximar a realidade social daquilo que aprenderam.
Moura e Pereira (2007) acrescentam que foi permitido na sociedade, após a Constituição, o acesso ao ensino de um modo mais amplo, e o ensino jurídico despontou claramente nessa busca participativa da população, que agora começa a desejar atuar nos processos decisórios da sociedade. Assim, “a preocupação com a democratização agora é fomentar um ensino eficaz no aspecto qualidade, que permita ao futuro profissional inserir-se no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo” (MOURA & PEREIRA, 2007, p. 1203). Democratizar o ensino jurídico já não significa oferecer acesso à graduação, mas garantir que os alunos ali permaneçam, que recebam ensino de qualidade, com professores preparados, e, mais que isso, com possibilidades de alcançar objetivos profissionais no futuro dentro do mercado jurídico, e, ainda, aportando uma concepção crítica do direito e da sua própria atuação, não aquela cultura jurídica repetida incessantemente.
Por outro lado, não se pode negar que essa repentina expansão do acesso ao ensino jurídico provocou incômodo e gerou questionamentos acerca da mercantilização da educação jurídica, da saturação de mercado, qualidade de cursos, seleção de alunos, etc., na mesma medida em que modificou o perfil dos estudantes e futuros bacharéis. Não ocupam mais as vagas os antigos herdeiros legítimos da sociedade, mas os filhos da classe trabalhadora, filhos de operários, e até operários, muitos alunos que representam o primeiro membro familiar a ingressar no Ensino Superior. A busca pelo curso de direito não apenas a busca pelo ensino, mas pela igualdade proposta na democracia, pela melhoria da condição de vida.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os cursos de direito no país, até meados do século XX, eram acessados quase que exclusivamente por membros oriundos da aristocracia brasileira. Estudantes de classes populares eram raros e meras excepcionalidades nesses cursos. Até esse momento, nem mesmo poderia se falar em “exclusão” das classes populares dos cursos de direito, pois, para serem excluídos, precisariam estar ou sentirem-se de algum modo incluídos nesse processo. Mas, até então, as classes populares, até inconscientemente, sequer sentiam-se no direito de desejar, sonhar, pleitear fazer parte desse mundo.
No entanto, a partir das reformas da educação superior da segunda metade do século XX, especialmente as do final do século XX e início do século XXI, as classes populares passam a acessar cursos, como o de direito, antes quase exclusivamente reservado às elites. Este fato “inclui” as classes populares no processo, mas isso se dá de modo precário, marginal, instável. Trata-se da forma de inclusão “daqueles que estão sendo alcançados pela nova desigualdade social produzida pelas grandes transformações econômicas e para os quais não há, senão, na sociedade, lugares residuais” (MARTINS, 1997, p. 26).
Os dados da pesquisa demonstram como o acesso das classes populares nos cursos de direito tem se dado a partir de meados dos anos 1990, na sua imensa maioria, em IES criadas no âmbito da expansão capitalista e mercadológica do ensino superior, ou seja, centros universitários, faculdades e universidades - 90% privadas - com indicadores de qualidade e índices de aprovação nos Exames da OAB baixíssimos, salvo raras exceções, que são as IES privadas sem fins lucrativos.
Nesse sentido, apontam Bourdieu e Champagne que:
Seria necessário mostrar aqui, evitando encorajar a ilusão finalista (ou, em termos mais precisos, o “funcionalismo do pior”) como, no estado completamente diferente do sistema escolar que foi instaurado como a chegada de novas clientelas, a estrutura da distribuição diferencial dos benefícios escolares e dos benefícios sociais correlativos foi mantida, no essencial, mediante uma translação global das distâncias (BOURDIEU & CHAMPAGNE, 2007, p. 221).
Os estudantes de direito de classes populares passam a ter, então, uma formação precária, diplomas desvalorizados e uma escolaridade com fim em si mesma. A diversificação das IES faz com que os “excluídos do interior” invistam seu pequeno capital cultural e econômico em estabelecimentos menos valorizados. Quantos jovens ingressam os cursos de Direito acreditando que quando concluírem a faculdade poderão ter a possibilidade de uma boa carreira, e logo, deparam-se com a realidade de que primeiro, precisam conseguir aprovação em um exame cujos índices médios são de 20%, e, segundo, depois dessa aprovação, caso queiram se preparar para um concurso público, deverão ainda atuar um mínimo de 3 anos na advocacia. Parece que essas imposições ignoram completamente a estrutura social da maior parte do país, e existe um aparato legal que legitima a situação.
Um diploma de um curso de direito, não converte em igualdade de oportunidades, as diferentes aquisições de conhecimento, tanto em virtude das IES cursadas, do tempo disponível dos estudantes, as oportunidades objetivas, os capitais culturais e sociais adquiridos durante toda a trajetória de vida dos estudantes de classes populares. A falta dessa percepção acaba por revelar, na maior parte das vezes tardiamente, a triste revelação de que as esperanças e expectativas tão arduamente projetadas, estavam aquém da possibilidade de sua realização.
O Direito e o Ensino Jurídico brasileiro, para que realizem a justiça social de fato, precisariam passar por uma reformulação completa, à parte da ideologia dos antigos aprendizes do poder. Essa ideologia ainda sustenta o Ensino Jurídico e mantém as classes populares distantes dos centros de controle, por meio de ferramentas legais que dão suporte para a violência simbólica que têm exercido sobre a população.
A democratização deve ser a via para alcançar uma sociedade igualitária, com autonomia, participação, cidadania, direitos sociais e justiça social. Certamente que algumas melhorias são realizadas, porém, na sociedade em que vivemos, a democratização concretiza-se através da concessão somente das melhorias necessárias às condições de vida das massas, quando possibilitam a perpetuação do projeto capitalista, contribuindo para a reprodução do modelo social vigente. A expansão da oferta dos cursos de Direito, aliada às políticas de inclusão no Ensino Superior, ideologizadas sob o signo da democratização, reproduz as desigualdades históricas de maneira mais branda e disfarçada, concedendo a aparência ilusória de inclusão e liberdade.
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