Revista de Estudos em Organizações e Controladoria - REOC, ISSN 2763-9673, UNICENTRO, Irati-PR, v. 2, Dossiê APP, p. 28-50, dez., 2022.
Dossiê Análise de Políticas Públicas
Editores Convidados: Prof. Dr. Bruno Martins Augusto Gomes e Prof. Dr. Roberto Eduardo Bueno
QUANDO O PROVISÓRIO SE TORNA PERMANENTE: A OPERAÇÃO
ACOLHIDA COMO POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL
1
WHEN TEMPORARY BECOMES PERMANENT: BRAZILIAN “OPERAÇÃO
ACOLHIDA” AS A MIGRATION POLICY
MADISON RAMNIERY GONZALEZ-GARCIA
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
E-mail: madison.gonzalez2104@gmail.com
ELISA CRISTINA DE CARVALHO
Università degli Studi di Roma "La Sapienza"
E-mail: lisacris@gmail.com
RESUMO
O Brasil é o quinto país receptor do fluxo de venezuelanos na região e o segundo com mais venezuelanos
refugiados. À medida que essa situação ganhou ímpeto, os governos municipal e estadual se viram despreparados
para responder às necessidades básicas decorrentes do aumento do fluxo de refugiados e imigrantes venezuelanos.
Em 2018, na tentativa de administrar o fluxo venezuelano, o Estado brasileiro implementou a Operação Acolhida,
uma força-tarefa militar-humanitária para controle, acolhimento e integração dos imigrantes que entravam pela
fronteira norte no estado de Roraima. Com base na premissa de que a política pública não é uma ação
governamental programada para responder a uma demanda pontual, mas, que contempla ações intencionais que
fazem uso de instrumentos e recursos para oferecer “soluções duradouras” e alcançar benefícios públicos, este
artigo analisou a “Operação Acolhida” como uma política pública de caráter migratório a partir da perspectiva de
ciclo político. Dentre as conclusões, pode-se citar a fragilidade do sistema e das políticas de acolhimento e
assistência aos imigrantes no âmbito municipal, especialmente em relação ao orçamento e financiamento. Ainda a
intenção do governo brasileiro em resolver a questão do fluxo migratório venezuelano de maneira provisória, sem
a necessidade de trazer ao debate público o que rege o artigo 120 da Lei de Migrações: criação de uma “Política
Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia”.
Palavras-chave: Operação Acolhida; Políticas Públicas; Refugiados Venezuelanos; Policy Cycle; Imigrações Sul-
Sul.
ABSTRACT
Brazil is the fifth-largest recipient country of the influx of Venezuelans in the region, and the second-largest
country with the most Venezuelan refugees. As this situation has gained momentum, municipal and state
governments have been unprepared to respond to the basic needs arising from this increasing flow. To address the
influx of Venezuelan refugees, in 2018 the Brazilian state launched Operation Acolhida, a humanitarian and
military task force to control, receive, and integrate migrants entering Roraima state through the northern border.
Based on the premise that a public policy isnt a governmental action carried out in response to a specific demand,
but rather intentional actions that use tools and resources to offer "durable solutions" and achieve public benefits,
this article analyzed Operation Acolhida as a public policy with a migration character from the perspective of the
political cycle. Among the conclusions, one can cite the fragility of the system and the policies of reception and
assistance to immigrants at the municipal levels, especially in relation to budget and funding. Also, the Brazilian
government's intention to solve the Venezuelan migratory flux provisionally, without the need to bring to public
debate what is regulated by article 120 of the Migration Law: the creation of a "National Policy on Migration,
Refugee and Statelessness".
Keywords: Operação Acolhida; Public Policies; Venezuelan Refugees; Policy Cycle; South-South Immigration.
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DOI: https://doi.org/10.5935/2763-9673.20220013
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QUANDO O PROVISÓRIO SE TORNA PERMANENTE: A OPERAÇÃO ACOLHIDA COMO POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL
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1 INTRODUÇÃO
As migrações internacionais são processos coletivos, intimamente ligados a fenômenos
de mudanças estruturais e políticas que repercutem na dimensão social e cotidiana da população
de maneira bilateral, no país de origem e o de recepção (CASTLES et al., 2009). É comum
compreender que a migração envolve um processo voluntário, seja ele individual ou coletivo,
mas nem sempre é esse o caso, visto que ela também pode ocorrer de forma forçada.
Como consequência das transformações sociais, econômicas e políticas, tais migrações
acompanham a expansão dos mercados e frequentemente geram fortes conflitos sociais nos
países de origem (VALDIVIESO, 2001), o que pode produzir deslocamentos forçados. Os
motivos desses movimentos são diversos, como: políticos, econômicos, sociais e ambientais,
cuja duração pode ser permanente, temporária ou circular.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) designa a
migração forçada como a mobilidade humana causada por anomalias ou conflitos não
relacionados à dinâmica da acumulação de capital, por exemplo, o caso da violência
desencadeada por conflitos políticos, fome, violência gerada por guerras, guerrilhas e tráfico de
drogas ou também pela eclosão de desastres naturais como furacões, ciclones, entre outros
(DELGADO WISE; MÁRQUEZ COVARRUBIAS, 2012).
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR, 2022), no
final de 2021, eram 89,3 milhões de migrantes forçados. Isso se deve, em grande parte, ao
crescimento não só do número de conflitos, a exemplo da Somália, Iraque, Afeganistão, Síria,
Sul do Sudão, como de situações de vulnerabilidade e violação dos direitos fundamentais, como
é o caso da Venezuela.
A crise multidimensional da República Bolivariana da Venezuela (GONZÁLEZ
GARCÍA, 2019) tem originado fluxos migratórios de proporções nunca registradas na América
Latina, ultrapassando a marca de 6,1 milhões de deslocados em 2020 (R4V, c2022). Tanto no
volume da migração quanto na condição de vulnerabilidade, o fluxo migratório venezuelano se
assemelha a movimentos recentemente observados na Europa, oriundos do Norte da África e
do Oriente Médio sendo composto por migrantes econômicos, expatriados e requerentes de
asilo (o termo solicitante de asilo na língua inglesa é utilizado para os solicitantes de refúgio)
(WORLD BANK, 2018).
Segundo números oficiais, no Brasil se encontram mais de 350 mil cidadãos
venezuelanos, dos quais 92 mil aproximadamente foram reconhecidos como refugiados (R4V,
c2022). Signatário da Declaração de Cartagena, o Brasil tem deveres internacionais com relação
às migrações forçadas que adentram suas fronteiras, mesmo que no início de 2019 tenha
deixado de fazer parte do Pacto Global de Migração da ONU (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019).
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Em 2018, na tentativa de administrar o fluxo venezuelano, o Estado brasileiro
implementou a Operação Acolhida, uma força-tarefa militar-humanitária para o controle, o
acolhimento e a integração dos imigrantes que entravam pela fronteira norte no estado de
Roraima. Em contraposição à retórica vigente, essa pesquisa defende a hipótese de que a
Operação Acolhida se apresenta como uma política pública de cunho migratório e não apenas
uma força-tarefa humanitária e militar.
Com base nisso, esse trabalho analisa a Operação Acolhida como política pública de
cunho migratório, tendo como referencial o policy cycle (KRAFT; FURLONG, 2018; DYE,
2013). A despeito das críticas, o modelo sequencial (policy cycle) ainda é largamente utilizado
na análise de políticas que demandam uma compreensão das complexas condições prévias,
fatores centrais que influem e diversos resultados do processo político (JANN; WEGRICH,
2007). Isso justifica a escolha deste como marco de análise do estudo.
O arcabouço teórico-metodológico compreendeu a análise e a revisão de artigos
acadêmicos, livros, periódicos, leis, decretos, sites e mídias digitais governamentais e outras
publicações, institucionais ou organizacionais. Como parte da construção do entendimento das
dinâmicas de funcionamento da Operação Acolhida que culminou na análise do policy cycle,
foram realizas consultas a relatórios, editais, resoluções, notícias, listagens e principalmente
publicações em mídias sociais (posts e lives). Para a análise em si, uma matriz foi elaborada
relacionando as etapas do policy cycle com os dados empíricos relacionados à Operação
Acolhida.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A revisão teórica abordou conceitos relacionados a políticas públicas e suas formas de
avaliação, em especial, o policy cycle, também descreve aspectos da política migratória
brasileira.
2.1 Políticas públicas: conceitos e abordagens
Políticas públicas se referem a ações, decisões e omissões por parte dos diversos atores
envolvidos nos assuntos públicos, contemplando um conjunto de ações intencionais e causais
que usam instrumentos de procedimentos e de recursos, de maneira constante e coerente, cujo
objetivo é proporcionar soluções duradouras e em última instância atingir benefícios públicos
(ASTORGA; FACIO, 2009). Englobam tudo o que diz respeito à vida coletiva em sociedade,
sendo que em sua grande maioria possuem caráter permanente em razão da sua interferência
direta ou indireta na vida dos indivíduos.
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Propostas como resultado de um conjunto de análises e estudos realizados pelo governo,
as políticas públicas podem ser influenciadas pelas condições sociais e econômicas, valores
políticos, estrutura do governo e cultura (KRAFT; FURLONG, 2018).
As políticas traduzem não apenas os valores da sociedade, mas o conflito resultante da
heterogeneidade desta. Cabendo ao Estado, por meio de suas instituições e processos políticos,
escolher, seja pela priorização ou não de questões defendidas por eleitores e/ou a seus interesses,
o que se caracterizaria como problema público (KRAFT; FURLONG, 2018).
Segundo Hood e Lodge (2006), com certa frequência os governos são confrontados com
situações de escolha forçada, quando não podem ignorar o sentimento público sem arriscar a
perda de legitimidade ou credibilidade, e devem dar alguma prioridade ao assunto.
O principal foco de uma política pública é a identificação do tipo de problema que se
busca corrigir, mas, também, a forma pela qual tal problema chega ao sistema político e como
a sociedade e as instituições/regras que irão modelar a decisão e a implementação da política
pública (SOUZA, 2006).
Heidemann defende que o conjunto de processos, métodos e expedientes que compõem
as políticas públicas é usado por indivíduos ou grupos de interesses para influenciar, conquistar
e manter o poder, sendo empreendidas como funções de Estado por um governo, com o intuito
de resolver questões gerais e específicas da sociedade (HEIDEMANN, 2009).
Apesar de entendida como uma declaração de intenções, metas e objetivos com foco no
que é realmente feito e realizado, em vez do que é proposto e desejado (ASTORGA; FACIO,
2009), a política pública denota as intenções das forças políticas, ou seja, as intenções dos
governantes que se refletem nas políticas, sendo a omissão também uma ação (PRESSMAN;
WILDAVSKY, 1973).
Sendo as políticas públicas cursos de ação destinados a resolver problemas, não fazer
nada é uma ação que tem que ser tomada. Assim, a decisão de nada fazer é uma ação que deve
ser levada em consideração e implementada ou não (ASTORGA; FACIO, 2009), aspecto que
será mais bem explorado posteriormente.
2.2 Avaliação de políticas públicas: policy cycle
Como objeto de estudo, as políticas públicas se apresentam como processos
multidimensionais que se passam em diferentes escalões de ação e decisão (local, regional,
nacional), envolvendo diferentes atores (governamentais e não governamentais), que agem em
contextos políticos e geográficos específicos, com o objetivo de resolver problemas
considerados públicos e distribuir recursos e poder (ARAÚJO; RODRIGUES, 2017).
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Daí surge a importância de se analisar as políticas públicas, seus contextos próprios,
suas dinâmicas e as soluções advindas delas. O campo de análise das políticas (policy analysis)
busca esmiuçar determinado problema, identificar as opções de políticas disponíveis no
momento e como cada uma delas se enquadra diretamente nos princípios de eficácia, eficiência
e equidade (KRAFT; FURLONG, 2018).
Essa ideia extrapola a necessidade de determinar qual deve ser a política pública
proposta ou a escolhida, visto que inclui a compreensão e a identificação do processo de
deliberação e de debate sobre ela (KRAFT; FURLONG, 2018), assim, busca-se transcrever o
processo político dentro da perspectiva científica (WILDAVSKY, 1979).
Empreender uma análise técnica das múltiplas dimensões das políticas públicas de
forma a abarcar um entendimento real destas exige, igualmente, a análise dos processos
político-administrativos a ela vinculados, ou seja, seus arranjos institucionais, as ações dos
atores políticos, além dos instrumentos e das estratégias políticas (FREY, 2000). Entender o
que fazem os governos, por que o fazem e que diferença isso faz, além de aumentar o
conhecimento a respeito da ação do governo, possibilita o aperfeiçoamento da ação do Estado
e sua condição de promover melhorias no processo de formulação das políticas visando a
redução de problemas sociais (DYE, 2013; HAM; HILL, 1993).
A análise de uma política pública permite que a sociedade compreenda quais ações estão
ou não sendo realizadas pelo governo em cada área definida, questionando os efeitos gerados
na economia ou no bem-estar do cidadão, tanto a curto quanto em longo prazo (DYE, 2013).
Ao longo dos anos, o estudo da análise das políticas públicas desenvolveu modelos
teórico-analíticos a fim de permitir uma análise técnica do ciclo de vida” de uma política
pública, dentre eles o policy cycle, o modelo dos fluxos múltiplos, o modelo do equilíbrio
interrompido, entre outros (ARAÚJO; RODRIGUES, 2017). Tais modelos podem ser aplicados
como complemento um do outro, visto que, não um modelo ideal de análise e que se
diferenciam ao trazer diferentes perspectivas (DYE, 2013).
Para analisar a Operação Acolhida com base na perspectiva de política pública, foi
selecionado o policy cycle, também conhecimento como modelo sequencial. O modelo
apresenta cinco fases: identificação do problema, definição de agenda, formulação da política
(identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das opções), legitimação da política
(tomada de decisão), implementação e avaliação (KRAFT; FURLONG, 2018; DYE, 2013).
A nomenclatura das fases pode variar, havendo algumas comuns nas diferentes
propostas de estruturação, mas todas pressupõem a política pública dentro de um processo
sequencial (FREY, 2000). Essa divisão tem caráter pedagógico-processual, funcionando como
uma proposta de modelo ideal.
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O policy cycle tem como base uma perspectiva implícita de top-downe, como tal, a
formulação de políticas será enquadrada como uma direção hierárquica por instituições
superiores (JANN; WEGRICH, 2007). Na prática, as etapas não necessariamente precisam
obedecer à sequência e podem acontecer simultaneamente de forma não linear, em razão da
complexidade dos programas políticos e da dinâmica que caracteriza as reações mútuas dos
atores envolvidos (DYE, 2013; FREY, 2000).
Alguns pesquisadores afirmam que policy cycle dificilmente reflete a elaboração de
políticas do mundo real em termos de qualquer sequência hierárquica ou cronológica ou em
termos dos atores envolvidos.
A despeito do forte status teórico do policy cycle como estrutura e modelo, a
diferenciação por etapas tornou-se a forma convencional de descrever a cronologia do processo
de uma política pública (JANN; WEGRICH, 2007).
A estrutura do policy cycle não oferece apenas uma baliza de avaliação do sucesso ou
do fracasso (comparativo) de uma política pública, mas uma perspectiva contra a qual a
qualidade democrática desses processos poderia ser avaliada (sem seguir o pressuposto de uma
simples separação de etapas) (JANN; WEGRICH, 2007).
2.3 A política migratória no Brasil: entre o discurso e a práxis
As políticas públicas de cunho migratório se vinculam à convicção do que seria o ideal
de cidadania para os migrantes, sendo desenvolvidas de acordo com o momento histórico do
país e os interesses do Estado (ROGERIO, 2019). Um exemplo disso é o Brasil, historicamente
a percepção social da imigração foi fortemente influenciada por fatores conjecturais. De
estratégia eugenista, no período pós Lei Áurea, a recurso utilitarista econômico para a
industrialização, o imigrante foi considerado mão de obra essencial para o desenvolvimento
nacional, mas terminou percebido como uma ameaça à soberania nacional durante o Regime
Militar.
Dentro do conjunto das prioridades nacionais, a gestão da imigração não costuma ser
uma prioridade, a menos que tratada como questão de segurança nacional e de proteção das
fronteiras (SALAZAR; GLICK-SCHILLER, 2014). Em 24 de maio de 2017, é promulgada no
Brasil a Lei Federal 13.445, a chamada Lei da Migração, que trouxe consigo novas
perspectivas de entendimento da condição do imigrante ao ser comparada à sua precedente, o
Estatuto do Estrangeiro, que buscou consagrar a acolhida humanitária como princípio
orientador, afastando-se do princípio da segurança nacional (estrangeiro como ameaça à
soberania nacional). Destacam-se importantes mudanças em relação aos princípios e garantias,
dentre elas o repúdio e a prevenção à xenofobia, ao racismo e a outras formas de discriminação,
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e a defesa dos direitos sociais e trabalhistas dos migrantes por meio de políticas públicas,
garantindo-lhes acesso aos direitos e benefícios sociais como: educação, saúde, assistência
jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social (ASSIS, 2018).
Em 2013, durante o primeiro mandato da Presidente da República Dilma Rousseff, foi
protocolado o projeto que deu origem à legislação conhecida como “Nova Lei de Migração”.
Ainda em 2013, foi criada no Ministério da Justiça (MJ) uma comissão de especialistas
encarregada de elaborar um anteprojeto de lei de migrações, com o objetivo de substituir o
Estatuto do Estrangeiro. Após o impeachment de Dilma Rousseff, seu sucessor, o Presidente
Michel Temer, teve durante o seu mandato a interrupção da agenda migratória nacional e a
paralisação da tramitação da Lei de Migração. Enquanto isso, o governo passou a dar uma
resposta diferente à questão migratória, caracterizada por deportações de imigrantes e sanções
à Venezuela (ALVIM, 2018), desinformação sobre o número de refugiados e programas
existentes no Brasil, bem como mudanças nas chefias do Ministério da Justiça (e Cidadania),
do Ministério das Relações Exteriores, do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê
Nacional para os Refugiados (CONARE) (UEBEL; RANINCHESKI, 2018).
O processo de condução da efetivação das políticas públicas normalmente segue a linha
política do governante do momento, porém, deve ele atentar-se ao fato de que várias políticas
sociais, após a promulgação da Constituição brasileira de 1988, exigem do Estado a aplicação
de uma política pública cujo caráter seja permanente (CRESTANI; OLIVEIRA, 2018).
As crises políticas institucionais acabam por influenciar o campo econômico, e por
consequência o social, que afetam ainda mais a problemática da questão migratória, não apenas
pela crise econômica, que acirra a disputa pelas vagas de trabalho, mas também, pela
transferência das prioridades da agenda governamental. Por exemplo o período pós
impeachment de Dilma Rousseff, que desencadeou uma crise institucional política e econômica,
quando se observou que a agenda interessada à temática migratória acabou trazendo um caráter
essencialmente político-governamental em vez de político-estatal.
em abril de 2017, depois de novas articulações, a Nova Lei de Migração entrou na
pauta do Senado, sendo aprovada em plenário no dia 18 do mesmo mês, depois de obter
pareceres favoráveis em todas as comissões. Foi sancionada em 24 de maio do mesmo ano, no
limite do prazo para sanção, pelo presidente interino Michel Temer, apresentando cerca de 20
vetos, tendo sido retirados do texto a anistia para imigrantes indocumentados, a definição que
considera a vulnerabilidade de determinados grupos, dentre eles: solicitantes de refúgio,
requerentes de visto humanitário, vítimas de tráfico de pessoas e vítimas de trabalho escravo,
entre outros pontos (DELFIM, 2020). Esses vetos desvirtuaram parcialmente o espírito da Lei
de Migração (RAMOS et al., 2017), que manteve uma abordagem nos princípios da segurança
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nacional e o da proteção do trabalhador nacional em prejuízo das conquistas históricas
relacionadas aos direitos dos migrantes.
Isso enfraqueceu a participação do Estado em fóruns internacionais sobre migrações,
como a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), e em grupos de trabalho regionais do Mercado Comum do
Sul (MERCOSUL), da Organização de Estados Americanos (OEA) e da União de Nações do
Sul (UNASUL), que tratavam do tema das migrações, ao mesmo tempo em que aumentaram
os episódios de xenofobia e discursos políticos de aversão aos imigrantes, bem como, se tornou
frequente a reemigração daqueles que haviam imigrado na década anterior para outros países,
em virtude das crises de 2008 e 2012 em seus países de origem (UEBEL; RANINCHESKI,
2018).
A agenda política migratória do governo interino se restringiu consensual e
coletivamente ao programa “Uma ponte para o futuro” (BARROS, 2016), no qual a temática
das migrações se inseriu de forma subjetiva no item “Previdência e demografia”, não sendo
explicitamente citada.
Destarte, a aprovação da Nova Lei Migratória não necessariamente traduziu o plano de
Estado que lhe deu origem, que as alterações realizadas o vincularam ao mandato vigente.
Esse “comportamento político” pode resultar em ingerência política do governante transitório
e, em última instância, afetar o nível de comprometimento de política pública em caráter
permanente.
Com o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, a partir de 2019, a questão da
soberania nacional foi reforçada, sendo o acolhimento do fluxo venezuelano entendido como
uma oportunidade de expandir a influência brasileira na região, ao mesmo tempo em que reforça
ideias nacionalistas e ufanistas ao opor-se direta e ideologicamente ao regime venezuelano
(MACHADO, 2019).
3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
3.1 O caso venezuelano
O Relatório Global Trends 2019, do ACNUR, criou uma classificação para os cidadãos
venezuelanos dentro da configuração migratória, a de venezuelanos deslocados no exterior
(ACNUR, 2020). Tal classificação contempla pessoas de origem venezuelana que
provavelmente precisarão ou precisaram de proteção internacional de acordo com os critérios
contidos na Declaração de Cartagena, mas que não buscaram (até o momento) refúgio no país
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no qual estão localizadas. Independentemente de seu status, os venezuelanos deslocados no
exterior precisam de proteção contra retornos forçados e acesso a serviços básicos.
Isso se justifica, a priori, pois a migração mista implica que indivíduos provenientes de
uma realidade semelhante recebam tratamento diferente em razão do seu enquadramento
jurídico. No caso dos venezuelanos, estes apresentam grande variabilidade em sua capacidade
migratória, que condiciona de forma importante seu status migratório: residentes e/ou
solicitantes de refúgio, refugiados e venezuelanos deslocados no exterior (ACNUR, 2020).
Em geral, para assistir aos grupos migratórios de refugiados existem diferentes
instrumentos normativos internacionais e regionais (de livre adesão) que procuram a sua
proteção: Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951; Protocolo Relativo ao
Estatuto dos Refugiados, de 1967; Declaração de Nova York, de 2016. No âmbito regional de
proteção aos Direitos Humanos, temos os seguintes instrumentos: Declaração de Cartagena, de
1984; Declaração de San José sobre Refugiados e Deslocados Internos, de 1994; Declaração e
Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América
Latina, de 2004; Declaração de Brasília sobre a Proteção de Refugiados e Apátridas no
Continente Americano, de 2014. No entanto, para os migrantes, resta simplesmente o amparo
do Pacto Global da Migração, do qual o Brasil não faz mais parte, e as normas de cada país
receptor. No âmbito interno brasileiro tem-se o Estatuto dos Refugiados, de 1997, e a Lei de
Migração (Lei Federal nº 13.445/2017). A diferença fundamental entre essas duas categorias se
concentra no princípio jurídico chamado non-refoulement, ou seja, a não devolução. Esse
princípio internacional estabelece que nenhum país pode deportar ou “devolver” um refugiado
ao território no qual ele ou ela sofreu perseguição, contra sua vontade (ACNUR, 1997).
Assim, os Estados signatários dos tratados internacionais têm uma série de
responsabilidades perante todo indivíduo que pedir refúgio e proteção no seu território, dentre
elas a garantia contra a devolução, proteção contra às ameaças das quais eles fugiram e o
acesso a procedimentos justos de refúgio, além de medidas que garantam que seus direitos
humanos básicos sejam respeitados, a fim de permitir-lhes viver com segurança e dignidade e
encontrar uma solução em longo prazo.
Em suma, os Estados devem prover estruturas permanentes e mecanismos que facilitem
o processo de inserção laboral, educacional e social dos recém-chegados, com proteção e
garantia de direitos. Discutir políticas públicas destinadas à população refugiada de migração
forçada não se restringe ao debate de políticas sociais. No entanto, a mobilidade entre territórios
que corresponde a um fenômeno natural da sociedade acaba exigindo dos Estados de
acolhimento uma atuação mais planejada e estratégica na gestão de suas demandas internas,
pelo que é necessário desenvolver capacidades técnicas, administrativas e institucionais para
mitigar, além da administração da questão do refúgio, da qual não é possível isentar-se.
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A nova ordenação legal brasileira não foi suficiente para endereçar certas demandas, a
exemplo, o caso da migração forçada venezuelana (SOUZA; OLIVEIRA, 2019). Essa falta de
regulamentação dificultou a sua normatização e operacionalização, comprometendo a lei que
acaba perdendo a sua função em si mesma.
No caso dos venezuelanos, o Estado brasileiro acabou instituindo outros dispositivos a
fim de tornar a Lei Federal 13.445 mais responsiva ao contexto, visto que, antes de 2017 a
solicitação de refúgio era a forma mais prática de estar regularmente no Brasil para essa
população (GONZÁLEZ GARCÍA, 2019). O status migratório revelou-se uma estratégia de
entrada no território brasileiro, por meio do qual migrantes laborais ou fugindo de uma crise
humanitária recorreram ao argumento do refúgio para facilitar seu ingresso no país (DE
OLIVEIRA, 2019).
A articulação da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) com o Ministério de Relações
Exteriores e o Conselho Nacional de Imigração permitiu a criação do visto de residência
temporária por dois anos, por meio da Resolução Normativa CNIg nº 126, de 02/03/2017, que
foi posteriormente derrogada pela Portaria Interministerial n° 9, de 09/03/2018 (CNIG, 2017).
Esse documento autorizou a residência por dois anos a imigrantes que estivessem em território
brasileiro ou fossem cidadãos de algum país fronteiriço não pertencente ao Mercosul. Desde
2017, a Venezuela se encontra suspensa de todos os direitos e obrigações inerentes à sua
condição de Estado Parte do Mercosul com base no disposto no segundo parágrafo do artigo 5°,
do Protocolo de Ushuaia: ruptura da ordem democrática (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 2017).
O reconhecimento legal do Estado brasileiro da crise humanitária na Venezuela se deu
a partir do Decreto Federal 9.285/2018, que tornou aplicável o visto por razões humanitárias
em situações que envolvessem a migração motivada pela crise venezuelana. Em termos legais
e jurídicos, isso representou uma mobilização do Estado visando a resolução ou a mitigação do
fluxo venezuelano, que testemunhou grande crescimento a partir de 2017. À medida que o
amparo legal foi sendo construído, os pedidos de residência temporária ganharam expressão em
comparação com as solicitações de refúgio, embora tenham permanecido em volumes menores
(DE OLIVEIRA, 2019).
Desde 2015 registram-se ingressos de venezuelanos que atravessam a fronteira entre a
Venezuela e o Brasil pela cidade brasileira de Pacaraima, no estado de Roraima, situação que
impôs desafios à realidade local, que não apresentava condições favoráveis ao acolhimento. Os
migrantes que continuavam em direção à capital do Estado, Boa Vista, com o passar do tempo
e o aumento das movimentações, também viram esgotada sua capacidade de recepção,
sobretudo pela pressão nos serviços de saúde e assistência social (DE OLIVEIRA, 2019).
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QUANDO O PROVISÓRIO SE TORNA PERMANENTE: A OPERAÇÃO ACOLHIDA COMO POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL
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Os problemas econômicos por conta da crise que o Brasil atravessava impactaram o
corte de repasses financeiros para os municípios e Estados, tendo como consequência principal
o comprometimento de serviços públicos em todas as esferas: federal, estadual e municipal, e
o estado de Roraima não passou alheio a essa situação (CRUZ JÚNIOR, 2019). Despreparado,
o Estado tentou gerenciar localmente a questão. O Gabinete Integrado de Gestão Migratória
(GIGM), criado em outubro de 2016 com apoio do Governo Federal e funcionando em
diferentes pontos de Boa Vista e no município de Pacaraima, tinha como objetivo coordenar as
ações relacionadas ao acolhimento dos venezuelanos, como cadastramento, levantamento de
perfis para o mercado de trabalho, assistência básica e alojamento (FÉLIX, 2016).
Inicialmente, a atuação dos governos estadual e municipais da região era muito tímida
e sempre muito voltada a denunciar a ameaça que representava o impacto da migração nos
serviços públicos básicos. Em dezembro de 2016, Roraima decretou situação de emergência na
saúde na capital Boa Vista, em razão da grande quantidade de venezuelanos, o que
sobrecarregou os hospitais dos dois municípios. A média de atendimentos em Pacaraima, que
costumava ser de 30 por mês, chegava a 600. Tal decreto implicou no envio de auxílio, por
parte do Governo Federal, para que o Estado pudesse contratar servidores e receber insumos
(BRANDÃO, 2016).
Em 2017, inicia-se uma luta jurídica entre o Governo Estadual de Roraima e o Governo
Federal. O Estado decretou estado de emergência social e, por meio da ão Civil Originária
(ACO) 3121, solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o fechamento temporário de suas
fronteiras com a Venezuela, alegando que a entrada descoordenada de venezuelanos na região
resultou em um “incalculável impacto econômico” e que ao deixar de agir em sua área de
competência e de promover medidas de controle policial e nas áreas de saúde e vigilância
sanitária, a União tinha incorrido em inconstitucionalidades e em violações sistêmicas aos
direitos humanos (CONSULTOR JURÍDICO, 2018; VEJA, 2018).
A omissão da União no controle e na atuação administrativa na área fronteiriça, sem
repasse de qualquer recurso ao estado de Roraima, caracterizou o descumprimento dos deveres
federativos determinados pela Constituição Federal, até então os esforços haviam se
concentrado, majoritariamente, em ajuda técnica e em alguns repasses financeiros. Por essa
razão, dentro da ACO 3221, também foi solicitada a concessão de tutela de urgência à União
para que esta promovesse medidas administrativas na área de controle policial, saúde e
vigilância sanitária na fronteira para o acolhimento dos imigrantes. Finalmente, a ação incluiu
imediata transferência de recursos adicionais da Federação para suprir os custos suportados pelo
Estado, especialmente com saúde e educação dos venezuelanos estabelecidos em Roraima
(CONSULTOR JURÍDICO, 2018; VEJA, 2018).
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As dificuldades de acordo entre as esferas Federal, Estadual e Municipal travou o
funcionamento dos mecanismos de repasse previstos no acordo da Ação Cível Originária (ACO)
3221 e resultou na federalização da política de acolhimento. Na tentativa de coordenar e
organizar o fluxo de pessoas para atenuar as repercussões locais negativas e atender às
orientações do Ministério Público, em fevereiro de 2018, o Decreto Federal 9.286/2018
instituiu o Comitê Federal de Assistência Emergencial, ampliando as ações voltadas à questão
migratória venezuelana, originando à chamada “Operação Acolhida”.
No contexto da Operação, a Casa Civil tem a atribuição de coordenar e integrar as ações
dos órgãos e das entidades da Administração Pública Federal. Esta compõe e coordena o Comitê
que conta com a participação de 11 ministérios, como: o Ministério da Cidadania, o Ministério
da Defesa, o Ministério da Justiça, o Ministério da Educação, o Ministério da Saúde, o
Ministério da Economia, entre outros. Ademais, o ACNUR, a Organização Internacional
para as Migrações (OIM), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), além de mais de 100
entidades da sociedade civil.
Apesar do caráter provisório e emergencial e tendo inicialmente o propósito de defesa e
proteção da soberania da Nação, a força-tarefa humanitária foi implementada com o objetivo
de garantir a observância das normas internas de proteção aos refugiados e o acolhimento deles
em território nacional. Em maio de 2018, o Conselho Nacional de Direitos Humanos criticou o
modo como a questão migratória estava sendo gerenciada, denunciando o forte viés militar
adotado pelo governo (MARTINS, 2018), em contraposição ao necessário caráter humanitário
das ações.
A despeito disso, em 28 de agosto de 2018, foi sancionado o Decreto Federal
9.483/2018, que permitiu o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem
em determinadas áreas de Roraima (BRASIL, 2018). O documento reforçou a militarização do
processo de coordenação do fluxo migratório fronteiriço, contrariando o princípio da acolhida
humanitária pregado pelo art. da Lei de Migração (MARTINS, 2018; KWEITEL; CERIANI,
2018), o referido decreto foi revogado pelo Decreto Federal 9.623, de 20 de dezembro de
2018.
A política emergencial de enfrentamento da crise migratória, cuja governança foi
estruturada e comandada pelas Forças Armadas, com controle centralizado na União, foi
estruturada em três eixos (OPERAÇÃO ACOLHIDA, c2020). O primeiro, o ordenamento de
fronteira, inclui recepção, identificação, documentação, triagem e cuidados médicos básicos
aos venezuelanos que chegam ao Brasil pela fronteira com Roraima (GONZÁLEZ-GARCIA,
2021). A autora explica que o atendimento aos imigrantes começa nas estruturas montadas para
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assegurar recepção, identificação, fiscalização sanitária, triagem dica, imunização,
regularização migratória e triagem dos imigrantes venezuelanos.
Para González-García (2021), os recém-chegados entram no território brasileiro,
frequentemente, sem condições econômicas de se manter, ficando à mercê das provisões
governamentais, enquanto uma parcela é enviada a abrigos provisórios, com infraestrutura de
saúde e saneamento básico precária, com baixas condições de educação e moradia, num cenário
de constante sonegação de direitos fundamentais, sem mencionar os que perambulam pelas ruas.
No eixo que se refere ao abrigamento, a Operação Acolhida promove a acomodação em
abrigos e albergues na zona fronteiriça, com alimentação, educação, cuidados em saúde e
proteção social. Os imigrantes são provisoriamente encaminhados a um dos 13 abrigos em
Roraima, onde recebem três refeições por dia, kits de higiene pessoal e de limpeza e participam
de aulas de português, atividades culturais, lúdicas e recreativas, assim como provisão
telefônica para comunicação com parentes na Venezuela e segurança 24 horas (ACNUR, 2020).
Conforme o descrito pela Operação Acolhida (2020), os abrigos são de responsabilidade
do Ministério da Cidadania, das Forças Armadas e da ACNUR. Importante pontuar que não são
todos os venezuelanos que passam por esse processo, pois o uso dos serviços pode se dar de
maneira parcial e pessoas que simplesmente tramitam a documentação e continuam sua
viagem para outras regiões do Brasil, não participando do abrigamento (GONZÁLEZ-GARCIA,
2021).
Figura 1 Modalidades da Operação Acolhida
Fonte: As autoras, com base na Operação Acolhida (c2020).
A Operação Acolhida (c2020) expressa que o terceiro eixo, da interiorização, consiste
na transferência dos refugiados e imigrantes a diferentes estados do país. A estratégia, segundo
a Operação, é promover a integração dos venezuelanos em outras regiões do país, ao oferecer
maiores oportunidades de inserção socioeconômica, o que em contrapartida diminuiria a
pressão sobre os serviços públicos do estado de Roraima além de abrir novas vagas para
venezuelanos em abrigos perto da fronteira (OPERAÇÃO ACOLHIDA, c2020). Apenas os
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imigrantes regularizados no país, imunizados clinicamente e com termo de voluntariedade
assinado, atestando seu desejo de ser interiorizado e a concordância com as regras do processo,
podem participar de uma das quatro modalidades disponíveis (ANDRIOLO, 2021).
Ente abril de 2018 a 5 de janeiro de 2021, foram interiorizados 42.496 venezuelanos,
em 599 municípios brasileiros (ACNUR, 2020). A partir de 2019, que marcou o início do
Governo de Jair Bolsonaro, a Operação Acolhida entra em uma segunda etapa estratégica de
interiorização, com a assinatura de acordos de parceria com a Confederação Nacional de
Municípios (CNM) e as agências das Nações Unidas, que orientam os prefeitos e vereadores
sobre as regras da interiorização e de acolhimentos aos venezuelanos com o intuito de responder
às necessidades laborais locais (CNM, c2019).
O recebimento de imigrantes não implica a transferência de recursos orçamentários e
financeiros entre os partícipes, cabendo a cada um prover os recursos humanos, materiais e
financeiros necessários à execução das respectivas responsabilidades, sendo que uma eventual
transferência de recursos será efetivada mediante instrumento específico, de acordo com a
legislação de cada órgão, entidade ou instituição envolvida, observada a disponibilidade
orçamentário-financeira.
Pelo protocolo de intenções, cabe à União apoiar os municípios que receberem
imigrantes e refugiados venezuelanos com programas, políticas e ações, observada a legislação
e a disponibilidade orçamentária de cada órgão, neste último caso, mediante a celebração de
instrumento específico, enquanto é responsabilidade da ACNUR, da OIM e do UNFPA apoiar
o monitoramento da integração local de imigrantes e refugiados venezuelanos deslocados ou
interiorizados, por meio de orientação técnica aos gestores locais (MARTIMON, 2019).
Na tentativa de mitigar a não transferência de recursos para o atendimento à população
em questão, segundo a Operação Acolhida (c2020), o Governo Federal, em parceria com o
Banco do Brasil, criou um fundo financeiro privado, pactuado até o montante de R$ 100
milhões e administrado pela Fundação Banco do Brasil (FBB), entidade de natureza privada.
Esses recursos arrecadados pela plataforma (dados disponíveis em: https://acolhida.fbb.org.br/)
são utilizados em ações sociais indicadas pela Operação Acolhida (OPERAÇÃO ACOLHIDA,
c2020).
Dentro do discurso governamental que promove a Operação, consideramos que a
intenção é desonerar os recursos governamentais e promover a articulação entre as iniciativas
da sociedade civil, governos e organismos internacionais no atendimento às necessidades de
imigrantes e refugiados, o que reforça a ideia de uma transferência de responsabilidade (tanto
financeira quanto institucional) por parte da União para as Agências da ONU e organizações da
sociedade civil quanto à obrigação de favorecer o processo de inserção social que se apresenta
dentro do discurso.
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3.2 A Operação Acolhida e o policy cycle
A Operação Acolhida foi implementada em 2018 com caráter provisório, sendo
declarada como medida paliativa. Por meio da análise a qual se propôs esse trabalho, a
estruturação e sua implementação incorporam as dimensões intencional, de constância,
temporalidade e resolução de problemas públicos que acabam por caracterizá-la como uma
política pública na área migratória, cujos efeitos se dão a longo prazo, principalmente no que
concerne o eixo da interiorização.
Quadro 1 Análise de política pública Operação Acolhida (continua)
Processo
Desdobramentos
Participantes
Operação acolhida
Identificação
do problema
Analisar os problemas a serem resolvidos por
meio do levantamento das demandas e
necessidades da sociedade publicitadas e
direcionadas ao governo.
Compreender profundamente o problema, dentro
de um universo de problemas, para identificar o
lugar de relevância que o tornará capaz de
desencadear o ciclo político.
Interpretar os grupos sociais isolados, grupos
políticos, administração pública, mídia e outras
formas de comunicação política e social.
Meios de
comunicação.
Grupos de interesse.
Iniciativas dos
cidadãos.
Opinião pública.
A “invasão” venezuelana é
percebida como um risco aos
limitados sistemas de
assistências básica de saúde,
educação e segurança da região.
A mídia local mantém uma linha
editorial de divulgação dos
episódios de xenofobia, de risco
de colapso do sistema e aumento
da violência urbana.
Definição de
Agenda
Decidir quais demandas serão resolvidas e quais
problemas serão endereçados ao governo.
Considerar os impactos financeiros,
beneficiários, valores ideológicos e o potencial
de aceitação do problema na policy arena.
Elites. Presidente.
Congresso.
Meios de
comunicação.
Como resultado do embate com
o Ministério Público, uma
emergência da tomada de
decisão que não permite amplo
debate da problemática.
Elaboração de
programas e
tomada de
decisão
Formulação de
Políticas
Grupos de
Influência.
Presidente e gabinete.
Comissões do
Congresso.
Grupos de interesse.
A tomada de decisão se deu
devido a pressões advindas de
diferentes atores e instituições:
Ministério Público, governo
local, agências das ONU, ONGs
e a população resultando em
ação emergencial interventora
em vez de uma ação planejada e
discutida com os grupos de
interesse.
Legitimação
de Políticas
Grupos de interesse.
Presidente.
Congresso.
Tribunais.
Com o apoio das agências da
ONU e mantendo o viés de
soberania militar “humanizada”,
a ação é legitimada pela mídia
governamental, mas em parte
criticada por órgãos de proteção
aos direitos humanos e ONGs.
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Quadro 1 Análise de política pública Operação Acolhida (conclusão)
Processo
Desdobramentos
Participantes
Operação acolhida
Implementação
da Política
Organizar a estrutura pública (departamentos e
agências) para a implementação da política.
Prestar os pagamentos ou serviços, cobrança de
impostos para a execução das atividades/ações
que envolvem uma política pública.
Se necessário, criar estruturas governamentais
como departamentos, agências, gabinetes, etc.,
ou a inserção de novas responsabilidades às
estruturas existentes, para executar as tarefas para
que a política seja colocada em prática.
Presidente e pessoas de
apoio do Gabinete.
Departamentos e
agências executivas.
Sob o Comando da Casa Civil,
mas com o controle do
Ministério da Defesa, a estrutura
da política é toda centralidade na
União, com baixa participação
local e transferência de recursos.
Avaliação da
Política
Apresentar e divulgar os resultados gerados por
meio da execução de uma política pública.
Acompanhar e avaliar os impactos da política
sobre os grupos-alvo e não alvos.
Determinar se as ações propostas permitiram o
alcance dos objetivos e a solução do problema
desencadeador da política.
Caso seja necessário realizar correções, ou da
solução tenham surgido outras demandas, o ciclo
da política se reinicia e dele poderão sugerir
adaptações ao programa político anterior ou
ainda um novo.
Corrigir possíveis deficiências no impacto e nos
efeitos causados pela política que não foram
identificados nas etapas anteriores.
Promover a análise de custos e resultados
conseguidos com a sociedade, a fim de identificar
se eles realmente mitigaram ou resolveram os
problemas identificados.
Estrutura pública
(departamentos
executivos e agências).
Comissões de
Supervisão do
Congresso.
Meios de
comunicação.
Grupos de influência.
Não indicadores definidos
para a Operação, a não ser os
quantitativos dos atendimentos e
os números de interiorização.
Entretanto, a complexidade do
fenômeno requer uma avaliação
tanto qualitativa como
quantitativa.
Fonte: As autoras, com base em Serafim e Dias (2012), Kraft, Furlong e Dye (2013).
Políticas públicas são complexas em sua variedade de atores e interesses. Assim, a
proposta de entendê-la como um processo mais linear consiste no primeiro passo para
desenvolver uma análise mais profunda (JANN; WEGRICH, 2007). O policy cycle foi utilizado
como esquema de análise da Operação dentro da premissa de que esta é uma política pública
de caráter migratório. Em um exercício pedagógico de digressão, o Quadro 1 apresenta de forma
analítico-pedagógica a Operação Acolhida, tomando por base Serafim e Dias (2012), Kraft,
Furlong e Dye (2013), com o intuito de analisar pontualmente como se estruturou a Operação
Acolhida. Continuando a análise, sem exaurir as possibilidades, seguem alguns possíveis
problemas que poderiam ter influenciado na implementação da política (Figura 2).
Figura 2Possíveis problemas que tentou resolver a Operação Acolhida
Fonte: As autoras (2022).
Controlar a
entrada de
venezuelanos
na fronteira?
Garantir a
proteção dos
direitos
fundamentais
do imigrantes?
Reforçar a
importância
do Ministério
da Defesa no
contexto da
soberania
nacional?
Posicionar o
Brasil, na
região, em
termos
ideológicos
políticos?
Desafogar os
sistemas
locais e evitar
o colapso do
sistema?
Atender às
exigência e
orientações do
Ministério
Público
Federal?
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QUANDO O PROVISÓRIO SE TORNA PERMANENTE: A OPERAÇÃO ACOLHIDA COMO POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL
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O que se percebeu na Operação Acolhida, num primeiro momento, foi uma
centralização militarizada. Uma justificativa plausível seria o fato de que a estrutura montada
tinha como finalidade auxiliar o Estado de Roraima que, em sua realidade, não comportou o
crescimento populacional gerado pela chegada de venezuelanos e não necessariamente
gerenciava o fluxo em si.
A Operação Acolhida apresenta-se, portanto, como uma política combinada de
cooperação entre o Ente Federal e o Estado para o gerenciamento migratório. A ideia da
cooperação federativa se reforça com a introdução do eixo da Interiorização, a partir do qual o
governo passa a incluir outros atores no processo. E ao mesmo tempo realça uma possível
intenção política de buscar soluções permanentes para uma questão considerada “temporária”,
articulando com atores externos ou terceirizando responsabilidades.
A interiorização é considerada um êxito da Operação Acolhida, pela oportunidade que
oferece de promover a inserção laboral, social e econômica do migrante venezuelano, além do
esvaziamento demográfico em Roraima, porta de entrada aos imigrantes. Isso também permite
um maior controle no ordenamento de fronteira, evitando imigrantes ilegais e indocumentados,
e desestimulando o desenvolvimento de uma indústria de migração na região (GONZÁLEZ
GARCÍA, 2021).
A despeito das consequências locais que o grande fluxo venezuelano trouxe, o assunto
não foi considerado como um “problema público” pelo Governo Federal, tendo o Ministério
Público interferido e obrigado o Governo Federal a atuar (ANDRIOLO, 2021). Ou seja, atores
externos consideraram a questão uma situação de interesse público e interviram na agenda
política.
Essa situação faz emergir outra dimensão dos estudos de política pública que tratam da
“agenda negada”. A definição da agenda implica na seleção entre diversos problemas e questões.
É um processo de estruturação da questão política em relação às estratégias e aos instrumentos
potenciais que moldam o desenvolvimento de uma política nas etapas subsequentes de um ciclo
político, pelo qual, certas questões são mantidas longe da consideração e deliberação do
governo, a Agenda Negada (CAPELLA, 2016). A Operação Acolhida, a despeito dos efeitos
locais e potenciais em grande escala, parecia não ter relevância suficiente para ser considerada
um problema para a sociedade em geral, ou ser incluída no debate público amplo.
A ausência de coordenação entre os entes do pacto federativo na gestão migratória
enfraquece e fragiliza as políticas de acolhimento em todos os âmbitos. A falta de recursos e a
disputa por eles, reforçam a dimensão institucional e econômica que impactam na
implementação de políticas públicas e, por consequência, na definição do que seria um
problema público ou não.
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A narrativa apresenta a implementação da Operação Acolhida como uma força-tarefa
militar-humanitária. A intenção do governo brasileiro foi de resolver a questão do fluxo
migratório venezuelano de maneira provisória, sem a necessidade de trazer ao debate público o
que rege o artigo 120 da Lei de Migrações: criação de uma “Política Nacional de Migrações,
Refúgio e Apatridia”. A implementação de uma “Política Nacional de Migrações, Refúgio e
Apatridia” requer uma coordenação entre diferentes atores da sociedade (organizações da
sociedade civil, organismos internacionais e entidades privadas). Para implementar políticas
públicas capazes de promover a inserção plena do migrante, seria necessária a criação de ações
e metas, ao mesmo tempo, específicas e amplas, temporais e atemporais, objetivas e subjetivas
(ASSIS; VEDOVATO, 2020).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse analisou a Operação Acolhida como política pública de cunho migratório com base
no modelo sequencial (policy cycle). A aplicação desse modelo permitiu identificar diferentes
dimensões dentro da Operação Acolhida, demonstrando que mais do que uma força-tarefa
militar-humanitária esta pode ser considerada uma política pública.
A análise da Operação Acolhida reforçou a ideia de que a existência de uma política
pública não está relacionada diretamente à coordenação e ao empenho em sua execução, sendo
a sua existência, em determinadas situações, relacionada mais à pressão da sociedade por uma
resposta do poder público do que efetivamente uma análise integrada a fim de fortalecer os
mecanismos de gestão do Estado (LOPES, 2016).
Uma das maiores contribuições desta operação foi colocar em evidência a importância
do fortalecimento do Pacto Federativo no gerenciamento dos fluxos migratórios e a necessidade
de compartilhamento e cooperação para o cumprimento das responsabilidades estatais. Isso
resultará em uma presença estatal mais forte, evitando vácuo de poder e preservando a
dignidade dos beneficiários.
Definir uma política migratória adequada é complexo, pois a temática extrapola as
fronteiras territoriais de um país, sendo inexoravelmente influenciada por fatores históricos e
culturais de cada Estado-Nação. A escolha do Estado pela ação (ou inação) política de modo a
respaldar os direitos desses indivíduos deve ser uma opção política de Estado consciente e
planejada e não apenas uma ação emergencial implementada em um contexto difícil.
A aplicação de políticas públicas, e em especial as políticas migratórias, necessita de um
sentido amplo e permanente quando de sua implementação pelo ente estatal, em qualquer de
suas esferas: municipal, estadual ou federal. Isto ressalta a importância de uma real coordenação
entre diversas esferas de políticas públicas dentro da política migratória que evoque a
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participação da migração na construção das políticas que a ele concernem. Essa participação é
importante para a construção de uma política forte e inclusiva.
Fato é que a permanência do fluxo migratório no país de acolhimento é inerente ao
processo, assim, entender o migrante como um eterno quase cidadão impacta negativamente
em seu processo de inserção na nova sociedade.
O objetivo desse trabalho foi investigar a Operação Acolhida e sua atuação como
política pública de cunho migratório. Por ser um fenômeno relativamente novo, a questão
migratória no Brasil ainda carece de maior investigação. Questões relativas aos fluxos
migratórios Sul-Sul, a articulação de atores e a governança migratória são algumas sugestões
de pesquisa futura. Juntam-se a isso a análise do discurso midiático e político e os debates de
arena com relação à implementação, bem como, instrumento de avaliação da política pública.
A migração deve ser pensada e exercida para além do caráter territorial e de decisões
políticas fundamentadas em interesses específicos do Estado. Deve partir do princípio de que
os direitos de todos os indivíduos são previstos na Constituição e, portanto, devem ser
preservados e atendidos como um objetivo do Estado.
REFERÊNCIAS
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Tendencias Globales de ACNUR 2021. Disponível em:
https://www.acnur.org/publications/pub_inf/62aa717288e/tendencias-globales-de-acnur-
2021.html. Acesso em: 20 jul. 2022.
ALTO COMISIONADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR).
Conheça os abrigos que acolhem refugiados e migrantes em Roraima. ACNUR-Brasil, 2020.
Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/09/25/conheca-os-abrigos-que-
acolhem-refugiados-e-migrantes-no-norte-do-brasil/. Acesso em: 12 out. 2022.
ALTO COMISIONADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR).
ACNUR: la mayoría de las personas que huyen de Venezuela necesitan protección como
refugiadas. UNHCR-ACNUR, 2019. Disponível em:
https://www.acnur.org/noticias/briefing/2019/5/5ce33ee54/acnur-la-mayoria-de-las-personas-
que-huyen-de-venezuela-necesitan-proteccion.html. Acesso em: 20 ago. 2022.
ACNUR ALTO COMISIONADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS.
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