O USO DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS POR
GESTORES PÚBLICOS: ORIGENS E FUNÇÕES PROCEDIMENTAIS EM
POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL1
THE USE OF THE GENERAL PERSONAL DATA PROTECTION LAW BY
PUBLIC MANAGERS: ORIGINS AND PROCEDURAL FUNCTIONS IN PUBLIC
POLICIES IN BRAZIL
RAFAEL AUGUSTO FERREIRA ZANATTA
Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: rafa.zanatta@gmail.com
Resumo
A implementação eficaz da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) é um desafio
complexo para os gestores públicos, dada sua necessidade de conciliar a proteção de direitos
fundamentais com a promoção de usos inovadores e o fluxo amplo de dados. Este artigo
argumenta que a aplicação correta da LGPD enfrenta desafios no Brasil, incluindo a confusão
entre proteção de dados e sigilo da informação, a percepção de que a LGPD dificulta o uso
secundário de dados em políticas públicas e interpretações equivocadas da lei em casos
envolvendo conflitos com o direito de acesso à informação. Por meio de uma revisão bibliográfica
embasada na teoria do direito e políticas públicas, este estudo adota um método hipotético-
dedutivo para explorar como uma abordagem procedimental da proteção de dados, distinta da
privacidade e sigilo, pode esclarecer o papel da LGPD na formulação e execução de políticas
públicas.
Palavras-Chave: Proteção de dados pessoais, políticas públicas, gestores públicos.
ABSTRACT
The effective implementation of the General Personal Data Protection Law (LGPD) is a complex
challenge for policymakers, given their need to reconcile the protection of fundamental rights with
the promotion of innovative uses and the broad flow of data. This article argues that the correct
application of the LGPD faces challenges in Brazil, including the confusion between data protection
and information confidentiality, the perception that the LGPD hinders the secondary use of data in
public policies, and misinterpretations of the law in cases involving conflicts with the right of access
to information. Through a bibliographical review based on the theory of law and public policies, this
study adopts a hypothetical-deductive method to explore how a procedural approach to data
protection, distinct from privacy and secrecy, can clarify the role of the data protection law in the
formulation and execution of public policies.
Key-words: Protection of personal data, public policies, public managers.
1 DOI: https://doi.org/10.5935/2763-9673.20230014
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1. INTRODUÇÃO
A aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º
13.709/2018 – “LGPD”) trouxe um conjunto de novas preocupações para gestores
públicos no Brasil, considerando que a legislação exige que, para cada tratamento
de dados pessoais, exista um fundamento jurídico que o autorize. Em vigência
desde 2020, a legislação tem sido adotada gradativamente pelo poder público.
Como demonstrado empiricamente pelo Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) em 2022, sua adoção pela
administração pública não é plena.
Apesar de uma série de recomendações feitas pelo Ministério da
Economia, pelo Conselho Nacional da Justiça e pelo Tribunal de Contas da
União, 56% dos órgãos do Executivo “mencionaram a presença de pessoa ou
área responsável pela implementação da legislação” (CETIC, 2022, p. 97). É
muito recente o processo de adaptação à LGPD nas Prefeituras, governos de
Estado, autarquias, universidades e entre formuladores de políticas públicas. A
pesquisa do Cetic mostra que este percurso está apenas começando, em um
processo um pouco conturbado e lento.
A LGPD é uma lei inescapável aos gestores públicos. Ela se aplica a
qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa
jurídica de direito público ou privado. Seu escopo também é abrangente. Em
termos jurídicos, o tratamento de dados pessoais é definido amplamente como
toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a “coleta,
produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão,
distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação,
avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência,
difusão ou extração”2, conforme art. 5º, inciso X, LGPD.
Os dados pessoais possuem um conceito amplo. Trata-se de informações
relacionadas a uma pessoa natural identificada ou identificável. Portanto, os
dados pessoais não se resumem apenas aos identificadores tradicionais como
nome completo, filiação e registros como matrícula de nascimento, RG e CPF.
Por dados pessoais, também devemos entender os dados de geolocalização, o
2 Para facilitar a fluidez da leitura, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º
13.709/2018) será sempre mencionada como LGPD neste texto.
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protocolo IP, os registros de dispositivos (devices Ids) e identificadores produzidos
por rastreadores, desde que seja possível a identificação pessoal com baixo
esforço e custo. Como afirmado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados
Pessoais,3 “são também considerados dados pessoais outros dados que estejam
relacionados com uma pessoa natural, tais como seus hábitos de consumo, sua
aparência e aspectos de sua personalidade” (ANPD, 2023).
Considerando que a LGPD é “um dos principais desafios para a
administração pública” (CETIC, 2022, p. 96) e que ela busca o “equilíbrio entre o
tratamento de dados pessoais para melhorar a atuação do setor blico e
minimizar potenciais riscos aos cidadãos” (CETIC, 2022, p. 96), propõe-se
apresentar delineamentos iniciais sobre a LGPD, em especial sua origem e sua
natureza multidimensional, e explicar como ela se relaciona com a elaboração de
políticas públicas, considerando as demandas de gestores blicos.4 Gestores
públicos estão na linha frente das políticas públicas e precisam tomar decisões
estratégicas com relação ao uso de dados pessoais. Uma das justificativas para o
presente recorte é a evidente relação que existe entre a formulação de políticas
públicas no século XXI, que são intensivas em dados pessoais em razão do
estado atual de ubiquidade dos computadores e do barateamento do
processamento e armazenamento de informações (BOULET; LAJAUNIE;
MAZZEGA, 2019; TREIN; VARONE, 2023), com o regime jurídico da proteção de
dados pessoais, que é assegurado por uma lei federal e pela compreensão do
Supremo Tribunal Federal de que este é um “direito fundamental autônomo”, que
gera obrigações, por parte do Estado e dos gestores públicos, para seu devido
gozo pelos cidadãos.
Ao focalizar no gestor público que está tendo um primeiro contato com a
discussão sobre LGPD, parte-se do pressuposto que ele não possui contato com
a literatura técnica que explica as razões da diferenciação entre privacidade e
proteção de dados pessoais (DONEDA, 2006; SCHERTEL MENDES, 2014) e a
importância dos princípios de tratamento de dados pessoais, que possui uma
3 A ANPD é uma autarquia de natureza especial, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança
Pública, responsável por zelar pela proteção de dados pessoais e por regulamentar, implementar
e fiscalizar o cumprimento da LGPD no Brasil.
4 Para uma definição simplificada de “gestor público”, utiliza-se o conceito dado pelo Governo do
Estado do Paraná, em documento chamado Gestão em Foco, que conceitualiza o gestor público
como o “profissional que administra, atua e tem responsabilidade direta com o patrimônio público
pelo qual se deve zelar e prestar contas à sociedade” (GOVERNO DO PARANÁ, 2018, p. 9).
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longa origem histórica (DONEDA; ZANATTA, 2022; ZANATTA; BIONI, 2021;
ZANATTA, 2023). Por isso, uma apresentação sobre os principais contornos
do surgimento da proteção de dados pessoais, com base na literatura jurídica
especializada.
O presente artigo tem como objetivo apresentar três concepções
problemáticas sobre a LGPD, removendo essas preconcepções negativas com
relação à compatibilização da proteção de dados pessoais com políticas públicas.
A pergunta de fundo é: de que modo uma concepção procedimental da proteção
de dados pessoais, distinta da ideia de privacidade e sigilo, permite compreender
as funções da LGPD em políticas públicas?
Ao aprofundar a análise de tais concepções problemáticas, são
explicitadas as relações da LGPD com políticas públicas, o modo como a LGPD
trabalha explicitamente com uma autorização jurídica para tratamento de dados
pessoais no desenho de políticas públicas, sendo compatível, também, com uma
cultura de dados abertos no Brasil. Partindo de uma revisão bibliográfica de matriz
teórica no campo do direito e das políticas públicas em especial artigos e livros
especializados na temática –, o artigo vale-se de método hipotético-dedutivo para
responder a problemática central da pesquisa (MEZZAROBA, 2014). Nesse
sentido, busca-se testar o argumento de que a LGPD é um ferramental importante
para políticas públicas no Brasil e possui uma natureza procedimental, habilitando
os fluxos adequados de dados pessoais em uma sociedade datificada (BIONI;
ZANATTA, 2021).
2. PROTEÇÃO DE DADOS É EQUIVALENTE A SIGILO? A INCOMPREENSÃO
SOBRE AS ORIGENS DAS NORMAS SOBRE PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS
Um dos grandes desafios de se pensar a proteção de dados pessoais é
pensar para além das categorias de sigilo e confidencialidade das informações.
Se você digitar “proteção de dados pessoais” no Google, Bing ou DuckDuckGo,
certamente aparecerão imagens de cadeados ou objetos imagéticos que remetem
à sigilo e não intrusão. O cadeado serve como metáfora de impossibilitar o
acesso. Trata-se de uma imagem pouco adequada para compreender o
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significado da LGPD. Para desfazer a concepção problemática de que a LGPD
transforma tudo em sigilo o que serve apenas para limitar o acesso a terceiros
–, é fundamental uma recapitulação histórica sobre o direito à privacidade e o
modo como uma concepção de não intrusão foi central em grande parte do século
passado, o que prejudica a compreensão da proteção de dados pessoais como
direito fundamental distinto do direito à privacidade.
A inviolabilidade dos dados é um direito constitucional previsto no art. 5º,
XII. O direito à privacidade está previsto no art. 5º, X, ao afirmar que “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Em
2022, modificou-se a Constituição para afirmar que “é assegurado, nos termos da
lei, o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais” (art. 5º,
LXXIX). Mesmo sendo um direito fundamental autônomo, uma confusão com
sigilo e privacidade.
2.1. As Origens do Direito à Privacidade nos EUA
Como explicado por Danilo Doneda em sua obra Da Privacidade à
Proteção de Dados Pessoais, a proteção de dados pessoais é originária do direito
à privacidade, mas o se confunde com ele (DONEDA, 2006). As origens do
direito à privacidade remetem a um artigo clássico escrito em 1890 por Samuel
Warren e Louis Brandeis e publicado na Harvard Law Review. A partir do
problema do surgimento das máquinas fotográficas e de novos dispositivos
capazes de registrar imagens e disseminá-los em meios de comunicação na
região de Cambridge (EUA), o artigo argumentou que o direito civil estadunidense
precisaria de uma nova categoria jurídica para lidar com casos de
responsabilidade civil diante das expansões de tecnologias de registro de
imagens. O fundamento da argumentação dos autores era o surgimento de um
novo tipo de ilícito, capaz de produzir um direito à reparação (o que eles chamam
de tort law), em razão de violações aos direitos da personalidade. O bem jurídico
tutelado seria a própria dignidade das pessoas em razão da utilização comercial
de suas próprias imagens. Nesses termos, o right to privacy seria um direito de
reivindicação contra um ilícito em razão dessa violação da esfera íntima e dos
direitos da personalidade.
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no início do século XX, surgiram os primeiros casos que levaram o
chamado “direito à privacidade” para outros patamares, servindo como barreira
para uso coercitivo da força pelo Estado. Casos famosos da Suprema Corte dos
EUA, como Olmstead v. United States (1928), Nardone v. United States (1937),
Goldman v. Unites States (1942), interpretaram a aplicação ou não da Quarta
Emenda em casos de grampo telefônico. No famoso caso Olmstead, de 1928, a
Suprema Corte teve que decidir se agentes federais poderiam incluir grampos
telefônicos sem um mandado. O caso foi decidido por 5 votos a 4, tendo como
decisão final que a utilização do grampo telefônico não constituía uma violação
das cláusulas de devido processo da Quarta Emenda da Constituição dos EUA. O
caso gerou uma enorme polêmica pois a tese do ministro William Howard Taft,
juiz responsável pelo caso, era de que não havia uma busca (searching) e
nenhum tipo de apreensão (seizure), pois o grampo telefônico seria distinto de
apreender papéis e cartas.5
O caso Olmstead é especialmente famoso pois o ministro que escreveu o
voto contrário (o que chamamos de dissenting opinion) foi Louis Brandeis, um dos
autores do mencionado texto The Right to Privacy de 1890. Neste voto, Brandeis
argumentou que os avanços tecnológicos da eletrônica e das telecomunicações
teriam criado capacidades para “invasão da privacidade” de formas mais sutis.
Para Brandeis, não deveria existir diferença alguma entre o sigilo das
comunicações por carta e o sigilo das comunicações feitas por telefone. Aliás,
para Brandeis, o “incidente diabólico” da invasão da privacidade do telefone seria
maior que aqueles envolvidos com a violação das comunicações por carta.
A opinião de Brandeis se mostrou consagrada em 1967, com a votação
do caso Katz v. United States, que expandiu as proteções da Quarta Emenda da
Constituição para além das pessoas, cases e papéis. A interpretação dada pela
Suprema Corte foi de expandir as proteções jurídicas para áreas onde
“expectativas razoáveis de privacidade”. Para os ministros da Corte, a regra da
Quarta Emenda protege pessoas e não áreas. O caso Katz envolvia uma
5 Para o ministro Taft, a Constituição dos EUA proibiria a invasão do domicílio de uma pessoa e
proibiria a apreensão ilegal de um bem físico. Para ele, no entanto, os grampos eletrônicos seriam
dispositivos que permitiriam escutar a conversa de alguém, o que não seria um problema,
especialmente por ser uma cabine telefônica pública, que alguém poderia usar voluntariamente.
Partindo de uma posição conservadora sobre o papel do Poder Judiciário, o ministro da Suprema
Corte argumentou que o Congresso poderia aprovar leis específicas sobre intercepções
telefônicas, mas a Suprema Corte não poderia alargar a interpretação da Quarta Emenda.
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investigação do FBI contra um agente ilegal de apostas que utilizava cabines
telefônicas para se comunicar. O caso é paradigmático pois reconheceu o direito
à privacidade nas comunicações privadas, mesmo que feitas em telefones
públicos.
Outro fator de complicação é que o “direito à privacidade” ganhou outros
contornos nos EUA na década de 1960. No famoso caso Griswold de 1965, o
conceito de privacy foi utilizado para decidir um caso complexo no qual uma
família desejava fazer uso de pílulas anticoncepcionais sem ter a informação
registrada por uma clínica médica e transmitida para um órgão governamental. No
caso Griswold, o direito à privacidade estruturou uma ideia de “privacidade
sexual” muito importante nos debates de teoria de direito (ALLEN, 1988;
CITRON, 2018) –, no sentido de que decisões sobre usos de lulas
anticoncepcionais dizem respeito a uma esfera íntima da relação entre casais,
não devendo existir pretensão estatal de analisar essas informações. Esses casos
estruturam uma clara concepção de privacidade como liberdade negativa e como
restrição do acesso.6
2.2. O Domínio da Ideia de Sigilo das Comunicações e Liberdades Negativas
Talvez uma das origens da confusão entre privacidade e sigilo, que afeta
até hoje a LGPD, esteja na força dos casos Olmstead e Katz e do problema que
eles lidam. O caso Olmstead é um caso clássico de “não intrusão” e de liberdades
individuais dos cidadãos que devem se sobrepor a qualquer tentativa
governamental de obtenção de informação e de poder. Ou seja, trata-se mesmo
de uma dimensão liberal clássica dos direitos fundamentais. A liberdade negativa
é, por excelência, uma capacidade do cidadão de limitar a atuação de seu
governo e do Estado (SCHAEFFER, 1941). Como explicado pelo historiador
James Whitman, essa concepção de privacidade como liberdade é uma marca
cultural do povo estadunidense, que se explica desde sua fundação contra o
6 Anita Allen e Erin Mack assim define a privacidade: “A privacidade pessoal existe sempre que
um certo grau de inacessibilidade protege pessoas ou informações sobre elas de outras pessoas.
Reclusão, solidão, anonimato, sigilo, confidencialidade e reserva são formas discretas de
privacidade. Embora a privacidade seja um fenômeno em todas as sociedades humanas, a sua
disponibilidade e valor percebido variam de acordo com a cultura, a economia, status, a idade e o
género. O gênero é uma varvel social fundamental na disponibilidade de certas formas de
privacidade individual e de grupo” (ALLEN; MACK, 1991, p. 444).
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império inglês (WHITMAN, 2004) e que talvez não encontre paralelo nem na
Europa nem na América Latina.
No Brasil, as discussões sobre direito à privacidade foram praticamente
inexistentes na primeira metade do século XX. O direito civil trabalhava com
categorias de intimidade, honra e imagem, mas não com a noção de direito à
privacidade. Na década de 1930, a Constituição Federal de 1934, promulgada
durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, garantiu uma série de direitos e
garantias individuais, como igualdade perante a lei, não privação de direitos por
convicções filosófica, políticas ou religiosas, livre manifestação de pensamento,
“respondendo cada um pelos abusos que cometer”. Também foram assegurados
direitos de liberdade de associação para fins lícitos, liberdade de exercício de
profissão, liberdade de reunião sem armas, entre outros. Nos termos do art. 113,
o que poderíamos entender como direito à privacidade estava afirmado como um
direito de sigilo da correspondência e um direito de o intrusão de sua casa e
não desapropriação de sua propriedade.7
Como observou René Ariel Dotti em estudos pioneiros sobre direito à
privacidade feitos no final da década de 1970, a sociedade brasileira sempre lidou
mal com os direitos da personalidade e novos direitos constitucionais
relacionados às liberdades civis, talvez por uma profunda limitação de exercício
de direitos civis que remonta à nossa história e nossa concepção de cidadania
(ZANATTA, 2023, pp. 70-75). A tradição brasileira sempre foi muito mais
penalista, focada em punir condutas, ao invés de assegurar direitos civis. Tendia
a resumir a tutela da intimidade em uma questão de direito penal. O art. 153 do
Código Penal, na década de 1940, dizia que era crime “divulgar alguém, sem
justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência
confidencial, de que é destinatário ou detentor, a cuja divulgação possa produzir
7 Estabeleciam os incisos do artigo 113 da Constituição de 1934: “8) É inviolável o sigilo da
correspondência (...) 16) A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar,
de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres,
nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. (...) 17) É garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei
determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei,
mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção
intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem
público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior” (BRASIL, 1934).
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dano a outrem”. Grande parte da produção jurídica desta época se dedicou a
aspectos de direito penal com relação a este tipo penal (GARCIA, 1949).
No Brasil, essa confusão sobre o direito ao sigilo das comunicações e o
direito à privacidade foi incrementada por uma série de casos fiscais das décadas
de 1980 e 1990. Neles, discutia-se o poder do fisco de obtenção de informações
bancárias e os regimes jurídicos de sigilo de informações bancárias, aplicáveis às
instituições financeiras. A Constituição Federal de 1988 introduziu, no artigo 5º,
inciso XII, a inviolabilidade do sigilo de dados como direito fundamental. Na
década de 1980, diversos autores, como Re Ariel Dotti e José Afonso da Silva
também propuseram novos remédios constitucionais para contenção de abusos
informáticos (DONEDA; 2006; ZANATTA, 2023). Essas ideais deram origem ao
habeas data, um instrumento para “assegurar o conhecimento de informações
relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de
entidades governamentais ou de caráter público” (art. 5º, LXXII, a. Constituição
Federal).
Na década de 1990, o Supremo Tribunal Federal julgou casos importantes
sobre sigilo bancário. Um argumento influente foi o feito por Tércio Sampaio
Ferraz Junior, professor da Universidade de São Paulo, que elaborou um parecer
sobre o conteúdo da previsão constitucional sobre inviolabilidade do sigilo dos
dados e os limites do exercício da fiscalização estatal (QUEIROZ; PONCE, 2021).
Para Tércio, não existiria um direito fundamental ao sigilo, mas sim
“circunstâncias nas quais o sigilo é instrumental à proteção de um direito
fundamental” (QUEIROZ; PONCE, 2021, p. 69). O argumento de Tércio
prosseguiu para diferenciar o sigilo da “comunicação dos dados” e “dos dados em
si”. A privacidade seria uma liberdade de negação, uma “imunidade contra o
pretendido poder de devassa ou intromissão investigativa em certas esferas das
vidas privadas de cidadãos” (QUEIROZ; PONCE, 2021, p. 69). Para Tércio, o
texto da Constituição de 1988 focalizou nas limitações para interceptações
telefônicas, que envolveriam a comunicação de dados. Em casos de
interceptação, deve existir ordem judicial que a autorize.
O argumento lógico construído por Tércio o levou à conclusão de que,
quando o Estado pretende obter dados fiscais que estão sob tutela das
instituições financeiras, não uma intercepção de “um ato comunicativo entre
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banco e correntistas”, mas sim “acesso a dados armazenados nos bancos de
dados da instituição financeira” (QUEIROZ; PONCE, 2021, p. 70). Para Tércio,
esses dados estariam protegidos pela regra geral da privacidade, mas não pelo
sigilo dos dados previstos na Constituição (art. 5º, XII). No entanto, o Supremo
Tribunal Federal adotou uma interpretação seletiva da tese de Tércio Sampaio em
dois casos importantes (Mandado de Segurança n. 21.729/DF e Recurso
Extraordinário 418.416/SC), decidindo que não haveria proteção de sigilo das
comunicações em casos de atuação do fisco para identificação de crimes
tributários.
O fato de os ministros do STF terem dado muita atenção à discussão sobre
sigilo dos dados, e muita pouca atenção ao conteúdo do direito à privacidade e do
direito à vida íntima, revela um problema de fundo mais crônico: ainda está em
construção, no Brasil, uma visão centrada na dignidade da pessoa humana e na
diferenciação entre direito à privacidade e direito à proteção de dados pessoais.
Como reconhecido pelo professor Virgílio Afonso da Silva, ainda é muito recente o
reconhecimento de que o direito à privacidade não se confunde com o direito à
proteção de dados pessoais (SILVA, 2021). Este último está ligado a uma ideia de
que existem direitos individuais e coletivos com relação ao uso legítimo de dados
para finalidades específicas, transparentes, leais, seguras e com regras de
responsabilização –, e existem direitos de dimensão objetiva”, que implicam em
uma obrigação positiva do Estado para agir e garantir que esses direitos são
efetivamente garantidos, tal como é o direito fundamental à defesa do
consumidor.
2.3. A Guinada para as Liberdades Positivas e o Problema dos Princípios
para uso Justo dos Dados pelo Poder Público
Na década de 1950, o Brasil passou a ser influenciado pelos processos
constitucionais pós-Guerra, especialmente dos países europeus, que elaboraram
Constituições centradas na dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
de liberdade. Foi o caso da Constituição da Alemanha e da Itália. A centralidade
da dignidade trouxe à tona um debate sobre desenvolvimento da personalidade e
uma nova concepção democrática de Estado. Stefano Rodotà chamou esse
processo de “revolução do homo dignus (RODOTÀ, 2011), pois houve uma
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focalização inédita na ideia da pessoa humana. Essa revolução da dignidade”
(RODOTÀ, 2011) foi responsável por colocar no centro das discussões a
autodeterminação da pessoa, a construção livre de sua identidade individual e
coletiva e as responsabilidades individuais e coletivas. Pelo trauma do nazismo e
do holocausto que levou à morte de milhões de judeus –, retomou-se o espírito
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que diz que os
homens nascem e são livres e iguais em direitos.
A Constituição Italiana, promulgada em 1948, fala no art. em garantia
dos direitos invioláveis dos homens, “seja individualmente, seja nas suas
formações sociais onde se desenvolve sua personalidade”. uma grande
ênfase na solidariedade. Introduz-se também não somente um princípio de
igualdade perante a lei, mas um direito de “dignidade social” (art. 3º). Como
explicado por Rodotà (2011), a ênfase na dignidade da pessoa, e não somente na
liberdade dos homens, foi o início de uma grande transformação que culminou na
Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000.
A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, aprovada em 1949,
por exemplo, inicia-se com um capítulo sobre direitos fundamentais. O primeiro
artigo trata explicitamente da dignidade da pessoa humana. Diz que “a dignidade
da pessoa humana é intangível” e que “respeitá-la e protegê-la é obrigação de
todo o poder público” (art. 1, 1). O fundamento da comunidade política é o
reconhecimento de “direitos invioláveis e inalienáveis” (art. 1, 2). O segundo
artigo, que trata dos direitos de liberdade, afirma que “todos têm direito ao livre
desenvolvimento de sua personalidade, desde que não violem os direitos de
outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral” (art. 2, 1). No
Brasil, autores como Orlando Gomes e San Tiago Dantas também introduziram
teorias sobre direitos da personalidade (DONEDA; ZANATTA, 2022), que são
ponto de partida para a proteção de dados pessoais no Brasil. O reconhecimento
explícito da dignidade aconteceu no Brasil com a redemocratização e a
Constituição de 1988, que estabelece que a República Federativa do Brasil se
constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a “dignidade
da pessoa humana” (art. 1º, III). Gustavo Tepedino, por exemplo, fala em “tutela
dos valores existenciais” no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.
O próprio reconhecimento da boa-fé nessas duas leis, como norma de
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comportamento (colaboração, informação, lealdade e sigilo), seria uma
funcionalização da proteção de pessoa e de sua dignidade, que são objetivos
constitucionais (TEPEDINO, 2006).
Antes das transformações que levaram à Constituição Federal de 1988, o
remédio constitucional do habeas data, o Código de Defesa do Consumidor e o
capítulo sobre direitos da personalidade no Código Civilos principais elementos
jurídicos que se relacionam com privacidade e proteção de dados pessoais antes
da elaboração da LGPD –, houve uma transformação significativa do próprio
conceito de privacy e o surgimento de um campo específico chamado de
informational privacy ou data privacy nos EUA (COHEN, 2017).
Como explicado por Danilo Doneda (2006), a principal modificação do que
seria o “direito à privacidade” ocorreu em razão de uma série de transformações
no debate público na década de 1960, com a expansão dos movimentos de
direitos civis8 e a expansão dos chamados “direitos da personalidade” no
pensamento jurídico europeu. Com a expansão dos computadores e os debates
sobre o National Data Bank nos EUA em 1965 (um sistema de centralização de
bases de dados de políticas públicas de saúde, educação, bem-estar juntamente
com informações de natureza fiscal), explodiram as discussões sobre o que
seriam usos justos de dados pessoais em sistemas automatizados. Surgiu, nesse
período, um amplo debate sobre o que seria a informational privacy. Já no final da
década de 1960, diversos intelectuais passaram a defender legislações federais
específicas que pudessem garantir um uso legítimo de dados pessoais em
sistemas automatizados de tratamento e uma autoridade independente, que
pudesse funcionar como órgão de fiscalização e controle.
Em Privacy and Freedom, de 1967, Alan Westin defendeu uma legislação
federal nos EUA que tivesse diversos critérios técnicos sobre responsabilidade
dos agentes de tratamento de dados, normas organizacionais que promovam a
segurança da informação e medidas técnicas que permitam identificar quais
autoridades públicas tiveram acesso às bases de dados, quais decisões foram
tomadas e se os usos de dados pessoais foram legítimos para políticas públicas.
8 Casos emblemáticos de direitos civis, como NAAPC v. Alabama, afirmaram direitos específicos
com relação à não exposição de dados organizacionais que pudessem impactar a liberdade
associativa de ativistas negros. Alan Westin, um dos principais intelectuais do campo do direito à
privacidade, afirma que as discussões do movimento negro sobre limites da vigilância estatal
foram centrais para ampliar o significado do right to privacy.
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Apesar de nunca terem aprovado uma “lei geral de proteção de dados”, os EUA
seguiram um caminho distinto, com a aprovação do Privacy Act e uma abordagem
que atribui aos indivíduos a responsabilidade pela promoção de seus direitos de
privacidade, especialmente quando existir dano. Regulações específicas surgiram
na área de proteção ao crédito e na saúde, com regras específicas para
empresas que atuam neste setor, mas sem a criação de uma Autoridade Nacional
de Proteção de Dados Pessoais (WESTIN, 1979; WESTIN, 1985).
Em 1972, o Secretário de Educação, Saúde e Bem-Estar dos EUA, Elliot L.
Richardson, criou um Comitê de Assessoria em Automated Personal Data
Systems, formulado em resposta às crescentes preocupações sobre
consequências danosas que podem resultar do uso descontrolado de aplicações
de computadores e tecnologias de telecomunicações na coleta, armazenamento e
uso de dados sobre cidadãos individuais. O Comitê tinha como missão produzir
recomendações sobre quatro elementos/problemas: consequências prejudiciais
que podem resultar do uso de sistemas automatizados de dados pessoais;
salvaguardas que podem proteger contra consequências potencialmente
prejudiciais; medidas que podem compensar quaisquer consequências
prejudiciais; e políticas e práticas relacionadas à emissão e uso de números da
Previdência Social (DEPARTMENT OF HEALTH, 1973).
Após meses de trabalho, a principal conclusão chegada pelo Comitê foi
que a privacidade dos estadunidenses era precariamente protegida contra
práticas arbitrárias ou abusivas de manutenção de registros de informações
pessoais. A saída seria a criação um Federal Code of Fair Information Practice
para todos os sistemas automatizados de tratamento de dados pessoais. A
espinha dorsal do Código seria formada por cinco princípios básicos de direito.
Primeiro, a proibição de sistemas secretos. Segundo o direito de saber que
informação pessoal é usada e para qual fim. Terceiro, o direito de impedir que
informações sejam obtidas para uma finalidade e utilizadas para outra, sem seu
consentimento. Quarto, o direito de corrigir ou modificar informações erradas.
Quinto, um dever geral de precaução e prevenção de usos abusivos de dados.
Esses cinco pilares formaram o eixo central dos Fair Information Practices
Principles (FIPPs), que se tornaram a principal moldura jurídica para direito à
privacidade informacional nos EUA.
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O relatório defendeu um princípio de “ausência de danos” para uso de
dados para fins de pesquisa e estatística. Nele, parece ter surgido a expressão
rights of individual data subjects, que se tornou linguagem dominante nas leis de
proteção de dados pessoais na Europa, especialmente em razão da influência
exercida pelo Código na formulação das Guidelines on the Protection of Privacy
and Transborder Flows of Personal Data pelo Comitê de Ministros da OCDE em
1980 e, posteriormente, no desenho do rascunho do Council Directive on the
Protection of Individuals with Regard to the Processing of Personal Data and on
the Free Movement of Such Data, no período constitutivo da integração de
mercados na União Europeia. Esse conjunto de medidas, sugerido pelo relatório
de 1973, “passou a ser encontrado em várias normativas sobre proteção de
dados pessoais”, tornando-se uma “espécie de núcleo comum entre diversas
normativas sobre proteção de dados” (DONEDA, 2017, p. 144).
As primeiras normas de proteção de dados pessoais surgiram após a
elaboração dessas recomendações sobre “usos justos de dados pessoais” e
princípios para livre fluxo de dados. Na década de 1970, surgiram legislações que
afirmaram esses princípios (como a Lei da Suécia em 1973, o Privacy Act de
1974, a Lei Federal da Alemanha em 1977 e a Lei de Liberdades Informáticas da
França em 1978). Em 1980, estavam formulados, pela OCDE, os seguintes
princípios: (i) princípio da minimização (collection limitation), (ii) princípio da
qualidade dos dados (data quality), (iii) princípio da especificação da finalidade
(purpose specification), (iv) princípio da limitação de uso (use limitation), (v)
princípio das salvaguardas de segurança (security safeguards), (vi) princípio da
abertura (openness), (vii) princípio da participação individual (individual
participation) e (viii) princípio da responsabilização (accountability).9
Como explica o cientista político Colin Bennett, esses princípios, que foram
inicialmente pensados para problemas primariamente gerados por grandes bases
de dados do poder público, se consolidaram, também, como referencial para
regulação das atividades do setor privado (BENNETT, 1992). Os regimes jurídicos
de proteção de dados pessoais, no entanto, sempre buscaram compatibilizar o
livre fluxo de dados, o desenvolvimento das economias de dados e os direitos
básicos dos cidadãos com relação à transparência, autodeterminação informativa
9 Para uma rica análise sobre as variações do conceito de accountability dentro das discussões
técnicas da OCDE, ver o trabalho de Bruno Bioni (2022).
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e exercício de direitos com relação aos próprios dados, com direitos de acesso,
de retificação, de oposição e de eliminação desses dados.
2.4. A LGPD cria regras para fluxo justo e lícito de dados e não regras para
sigilo
A lógica da LGPD não difere muito das normas criadas na década de 1970
e das recomendações feitas pela OCDE na década de 1980, que se tornaram
Diretiva da União Europeia em 1995, tornando-se muito influentes na América
Latina. Como dizia Danilo Doneda, a LGPD não possuía um espírito
profundamente radical como se fosse uma construção jurídica profundamente
inovadora e que causasse estranheza –, mas seguiu uma tendência
consolidada nos últimos 50 anos nas principais democracias do mundo
(DONEDA, 2011). O enfoque reside em quatro elementos fundamentais. Primeiro,
a definição clara de conceitos tidos como técnicos (tratamento, anonimização,
pseudonimização etc.). Segundo a definição de princípios que devem servir como
guia para todos os agentes de tratamento. Terceiro, obrigações e direitos para os
diferentes agentes, incluindo a obrigação de identificar corretamente a “base legal
para tratamento dos dados”, o que é chamado de legal grounds, ou fundamento
jurídico. Quarto, regras de responsabilização caso haja danos ou ilícitos
cometidos.
As grandes novidades da LGPD, por influência da General Data Protection
Regulation (GDPR), ocorreram muito mais em razão dos novos direitos de
portabilidade de dados pessoais, de contestação de decisão automatizada e de
revisão humana e ampliação da tutela jurídica para fins de profiling, que ocorre
quando um perfil sobre uma pessoa é criado, por meio de correlações estatísticas
em bancos de dados não estruturados (ZANATTA, 2023). Em linhas gerais, no
entanto, a LGPD possui uma conexão com os princípios de fluxos de dados
elaborados pela OCDE e pelo Conselho da Europa desde a década de 1980. A
Convenção 108, de 1981, trouxe o entendimento de que os dados pessoais
sujeitos a tratamento devem ser tratados de “forma justa e transparente”, devem
ser “recolhidos para finalidades explícitas, específicas e legítimas”, devem ser
“adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para as
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quais são tratados” e devem ser “rigorosos e, se necessário, atualizados”
(Convenção 108, art. 5, 4, alíneas a, b, c e d).
Essa mesma lógica é a que estrutura a LGPD. Para que os dados possam
adquirir uma dimensão transfronteiriça e possam circular de forma justa, eles
devem estar associados a uma finalidade específica, devem ser necessários e
adequados ao tratamento pretendido, devem colocar em marcha um conjunto de
procedimentos de segurança da informação e precaução a incidentes, e devem
ser concebidos como potenciais usos que devem estar sempre associados a
direitos subjetivos, considerando que “toda pessoa natural tem assegurada a
titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de
liberdade, de intimidade e de privacidade” (art. 17, LGPD).
Em maio de 2018, o Conselho da Europa decidiu abrir o protocolo à
assinatura da Convenção 108, de 1981, para diversos Estados, para além dos
Estados membros, em uma clara sinalização de disseminação dos valores
europeus. A Convenção reconhece que “é necessário promover, a nível mundial,
os valores fundamentais do respeito pela primazia e pela proteção de dados
pessoais, comprometendo-se assim à livre circulação de informação entre as
pessoas” (CONSELHO DA EUROPA, 2018).
Na sua essência, a LGPD cria regras procedimentais para um dado
pessoal seja tratado de forma lícita. Por isso, cria as figuras jurídicas do
“controlador”10, do “operador”11, doencarregado”12 e do “titular”13. O controlador é
a pessoa física ou jurídica que detém o poder de influência e definição de para
quê um dado é tratado e como um dado é tratado. O operador é a pessoa física
ou jurídica que trata um dado pessoal em razão de um comando, uma ordem, do
controlador. Por exemplo, os serviços da Amazon Web Services prestados a
universidades públicas para armazenamento de informações por serviços de
computação em nuvem (cloud computing), enquadram a Amazon como mera
operadora. Se uma universidade utiliza um sistema de armazenamento em nuvem
10 O controlador é "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as
decisões referentes ao tratamento de dados pessoais" (art. 5, VI, LGPD).
11 O operador é "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento
de dados pessoais em nome do controlador" (art. 5, VII, LGPD).
12 O encarregado é pessoa indicada pelo controlador e operador para atuar como canal de
comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD)”.
13 O titular é “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento”
(art. 5, V).
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para os dados pessoais de seus milhões de alunos, o cabe à Amazon definir
como e por que esses dados serão tratados, mas sim à universidade. A
responsabilidade pela licitude do tratamento é da universidade, que é
controladora dos dados pessoais.
A LGPD proíbe que os dados sejam coletados dos alunos e transferidos
para a Amazon para que sejam armazenados fora do país? Evidentemente que
não. A LGPD não é uma norma de proibição para tratamento transfronteiriço de
dados. Pelo contrário. Como dito, seguindo as recomendações da OCDE, ela é
uma norma de habilitação para o fluxo internacional de dados, criando deveres e
obrigações para os agentes de tratamento de dados. Neste exemplo, é claro que
a Amazon se compromete com uma série de obrigações jurídicas, mesmo sendo
uma operadora. Afinal, o controlador ou o operador que, em razão do exercício de
atividade de tratamento de dados pessoais, “causar a outrem dano patrimonial,
moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados
pessoais, é obrigado a repará-lo” (art. 42, LGPD). De acordo com a lei, o operador
“responde solidariamente pelos danos causados pelo tratamento quando
descumprir as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando não
tiver seguido as instruções lícitas do controlador”, hipótese em que o operador se
equipara ao controlador (art. 42, § 1º, I, LGPD).
Portanto, um gestor público poderia decidir utilizar um serviço de
computação em nuvem, da Amazon, que implique em transferência internacional
de dados pessoais. Isso em si não seria um ilícito. No entanto, haveria uma
obrigação de reparação caso ocorresse um descumprimento dos princípios de
segurança da informação pela Amazon, no sentido de não adotar “medidas de
segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de
acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição,
perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou
ilícito” (art. 46, LGPD). O parágrafo único do art. 44 é muito explícito ao afirmar
que responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o
controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança
previstas no art. 46 desta Lei, der causa ao dano.
Mesmo em uma situação em que o dano não estivesse explícito, mas fosse
apenas potencial, haveria uma obrigação de agir e de prevenir o dano. O princípio
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da prevenção diz que é necessária a “adoção de medidas para prevenir a
ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais” (art. 6º, VIII,
LGPD). Considerando que os dados pessoais são intrinsicamente ligados aos
direitos da personalidade e que o regime jurídico focaliza a proteção das pessoas,
é possível, também, uma atuação preventiva para remover um ato ilícito, contrário
ao direito. Os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis. O
Código Civil prevê, em seu artigo 12, que “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou
a lesão, a direito da personalidade”. Nesse sentido, é plenamente possível que a
própria universidade ou mesmo uma associação civil de servidores de uma
universidade ingresse com uma ação judicial para fazer cessar a ameaça a
direitos da personalidade, uma vez identificando uma situação fática que implica
em riscos significativos no tratamento de dados pessoais.
O que o gestor público deve ter em mente é que a LGPD é um instrumento
para fluxos adequados de dados pessoais e não o seu imobilismo. A LGPD não
significa que os dados pessoais devem estar resguardados como um “ativo não
acessível” a outros, como se estivessem em condição de sigilo. Como será visto,
tendo a correta identificação da base legal de execução de políticas públicas,
abre-se o caminho para inovações significativas na administração pública.
3. A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS ATRAPALHA POLÍTICAS
PÚBLICAS?
O percurso de aprovação da LGPD, durante os anos de 2012 a 2018, não
foi simples e envolveu um processo de convencimento do próprio governo federal
com relação ao valor da legislação. Inicialmente, quando o Anteprojeto de Lei de
Proteção de Dados Pessoais foi proposto pelo Ministério da Justiça em 2010,
surgiram preocupações por parte de gestores públicos, que consideravam que a
lei federal poderia atrapalhar a elaboração de políticas públicas (ZANATTA,
2023). No início das negociações com os Ministérios do governo Dilma, havia a
preocupação de que uma lei federal de proteção de dados pessoais poderia
atrapalhar políticas públicas que demandassem uma vasta quantidade de dados
dos cidadãos.14
14 o se trata de algo excepcional ao Brasil. Como explicado por Alan Westin (1979), gestores
públicos nos EUA também tiveram diversos conflitos com normas procedimentais de privacidade e
proteção de dados pessoais. O debate sobre o National Databank na década de 1960 envolveu
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Por exemplo, uma das principais bandeiras do governo Lula foi a
implementação do Bolsa Família e a agregação de informações por meio do
Cadastramento Único (Cad Único), que tinha sido estruturado pelo Decreto n.
3.877/2001, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O decreto instituiu o
Cadastramento Único para ser utilizado por todos os órgãos blicos federais
para a concessão de programas focalizados do governo federal de caráter
permanente, exceto aqueles administrados pelo Instituto Nacional do Seguro
Social - INSS e pela Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social
Dataprev” (art. 1º). De acordo com o desenho do CadÚnico em 2001, a
responsabilidade pelo tratamento dos dados pessoais era da Caixa Econômica
Federal.15
Em outubro de 2003, Lula reorganizou o CadÚnico de forma integrada com
o Bolsa Família, por meio da Medida Provisória n. 132/2003, lançando um grande
programa de combate à miséria extrema no Brasil.16 Foram definidas novas
condicionantes e critérios. O arranjo também assumiu um caráter bastante
experimental, pois a execução do Programa Bolsa Família foi pensada de “forma
descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federados,
observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social” (art.
3º). O CadÚnico também ficou sob responsabilidade do Conselho Gestor
Interministerial do Programa Bolsa Família.
Conforme estudo intitulado “Proteção de dados em políticas de proteção
social: contribuições a partir do Programa Bolsa Família”, a essência do Bolsa
Família é a focalização, que serve do cruzamento de várias bases de dados para
encontrar os cidadãos que mais necessitam do benefício e para identificar
um grande debate sobre interoperabilidade de dados pessoais de bases de dados de unidades
governamentais distintas.
15 Estabelecia o Decreto: “Os dados e as informações coletados serão processados pela Caixa
Econômica Federal, que procederá à identificação dos beneficiários e atribuirá o respectivo
número de identificação social, de forma a garantir a unicidade e a integração do cadastro, no
âmbito de todos os programas de transferência de renda, e a racionalização do processo de
cadastramento pelos diversos órgãos públicos”.
16 O programa tinha como finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das
ações de transferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa Nacional de
Renda Mínima vinculado à Educação - "Bolsa Escola", instituído pela Lei no 10.219, de 11 de abril
de 2001, do Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA, criado pela Lei no 10.689, de
13 de junho de 2003, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à saúde - "Bolsa
Alimentação", instituído pela Medida Provisória no 2.206-1, de 6 de setembro de 2001, do
Programa Auxílio-Gás, instituído pelo Decreto no 4.102, de 24 de janeiro de 2002, e do
Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto no 3.877, de 24 de julho de
2001.
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inconsistências que podem levar à exclusão do programa. Entre 2003 e 2020, o
Bolsa Família cadastrou 73 milhões de brasileiros (FRAGOSO et al., 2021, p. 9).
Ele consolidou, em uma base de dados, “dados de identificação e caracterização
de famílias e pessoas em situação de vulnerabilidade econômica (renda mensal
de até meio salário-mínimo por pessoa ou total família de até 3 salários-mínimos)”
(FRAGOSO et al., 2021, p. 9).
O percurso dos dados pessoais é bastante complexo. Inicialmente, o
cidadão se cadastra em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
Não é necessário que todos os membros da família compareçam, pois uma
pessoa pode ser nomeada “Responsável pela Unidade Familiar”,
preferencialmente a mulher (VALENTE et al., 2021). Nesse cadastro, apresentam-
se os dados de certidão de nascimento, certidão de casamento, CPF, RG, carteira
de trabalho ou título de eleitor. Pode-se exigir também declaração escolar das
crianças e autodeclaração de renda. O questionário também focaliza informações
como mero de pessoas no mesmo domicílio, escolaridade, condições de
moradia, condições de acesso, presença de deficiências que possam afetar
membros da família, pertencimento a grupos tradicionais e específicos.
Além do percurso interno para aprovação e seleção dos beneficiários, os
dados do Cad Único também são compartilhados com entidades estatais e não
estatais. De acordo com Fragoso et al. (2021), isso pode ocorrer por meio de
sistemas da informação integrados, extração da base completa a partir de
solicitação, e consulta no Sistema de Consulta, Seleção e Extração de
Informações do CadÚnico. O acesso à base também se pelo Sistema de
Benefícios ao Cidadão da Caixa Econômica Federal.
Em 2010, a ideia da LGPD gerou estranhamento dentro do governo
federal. Seria necessário obter o consentimento livre, informado e específico de
todos os beneficiários para todas as hipóteses de tratamento de dados pessoais?
Seria lícito tratar dados pessoais que revelassem condições de saúde (pessoas
com deficiência) e informações étnicas?
É claro que a LGPD traça uma diferença entre o dado pessoal e o dado
pessoal sensível. Este último é qualificado como “dado pessoal sobre origem
racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a
organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou
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à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa
natural”. Tais dados possuem sim um grau elevado de proteção, pois podem
acentuar discriminações e afetam os direitos da personalidade das pessoas
(MULHOLLAND, 2018).
No entanto, não proibição de tratamento desses dados para políticas
públicas. A LGPD traça uma diferença fundamental entre dois tipos de exigências
legais para tratamento de dados pessoais. Se o tratamento de dados pessoais
não envolve dados pessoais sensíveis, os fundamentos jurídicos estão no art.
da legislação. Eles permitem dez diferentes situações jurídicas para tratamento de
dados pessoais. Se o tratamento envolve dados pessoais sensíveis, os critérios
são mais reduzidos, não sendo permitido o “legítimo interesse do controlador”17.
No caso do Programa Bolsa Família, o consentimento, “de forma específica
e destacada, para finalidades específicas” (art. 11, I) é dispensável para os
principais elementos da política pública, pois a base legal é o “tratamento
compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de
políticas públicas previstas em leis ou regulamentos” (art. 11, II, b). O
consentimento é obtido pela Caixa Econômica Federal para o envio de e-mails
e mensagens por celular, sendo uma base legal para um tratamento específico,
que é a comunicação em meio mais invasivo, por assim dizer, por dispositivo
pessoal.
Conforme diz a LGPD, se uma política pública está estruturada em
legislação, os tratamentos de dados pessoais para execução da política pública
possuem uma base legal específica (art. 11, II, b). É o caso do Bolsa Família, que
foi reestruturado pela Lei n. 14.601/2023. A lei define que o Programa Bolsa
Família constitui etapa do processo gradual e progressivo de implementação da
renda básica de cidadania, de acordo com parágrafo único do art. da
Constituição Federal. O tratamento de dados pessoais é legitimado para
operacionalizar os três objetivos do Programa, estabelecidos por lei: (i) combater
a fome, por meio da transferência direta de renda às famílias beneficiárias, (ii)
17 Estabelece a LGPD neste ponto: “Art. 10. O legítimo interesse do controlador somente poderá
fundamentar tratamento de dados pessoais para finalidades legítimas, consideradas a partir de
situações concretas, que incluem, mas não se limitam a: I - apoio e promoção de atividades do
controlador; e II - proteção, em relação ao titular, do exercício regular de seus direitos ou
prestação de serviços que o beneficiem, respeitadas as legítimas expectativas dele e os direitos e
liberdades fundamentais, nos termos desta Lei”.
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O USO DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS POR GESTORES PÚBLICOS: ORIGENS E FUNÇÕES
PROCEDIMENTAIS EM POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL
contribuir para a interrupção do ciclo de reprodução da pobreza entre as
gerações, (iii) promover o desenvolvimento e a proteção social das famílias,
especialmente as crianças, dos adolescentes e dos jovens em situação de
pobreza (art. 3º, Lei n.º 14.601/2023).
A utilização dos dados pessoais sensíveis está legitimada pela
estruturação das condicionantes da política pública, tal como no art. 10 da Lei n.º
14.601/2023. Portanto, a utilização dos dados pessoais de saúde serve
especificamente à análise de realização de exame pré-natal, cumprimento do
calendário nacional de vacinação e acompanhamento nutricional de crianças de
até sete anos de idade. Todas essas utilizações legítimas estão previstas em lei
federal, o que dá amparo para que o tratamento ocorra para essas finalidades.
A legislação também é específica em definir que o controlador de dados
pessoais é o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome. A Caixa Econômica Federal é definida como “agente operador
e pagador do Programa Bolsa Família”, mediante condições pactuadas com o
governo federal. A lei federal também prevê que podem ser contratadas
instituições públicas e privadas para apoiar a operacionalização e pagamento dos
benefícios do Programa Bolsa Família.
O Programa Bolsa Família não é isento de críticas, do ponto de vista da
privacidade e proteção de dados pessoais. Valente et al. (2021) apontam riscos,
como as autorizações concedidas às distribuidoras de energia para acessar
integralmente a base de dados do CadÚnico e riscos de utilização dessas
informações para campanhas eleitorais. As autoras apontam para uma coleta
pouco orientada por imperativos de minimização (princípio da necessidade) e
poucas políticas de acesso e segurança da informação (VALENTE et al., 2021). É
evidente, portanto, que a LGPD não visa atrapalhar as políticas públicas, mas sim
melhorá-las e torná-las mais justas.
Como defendem Gasiola et al. (2021), dados e informações são
imprescindíveis na organização interna dos órgãos e entes públicos. Uma boa
gestão da informação, em conformidade com a LGPD, significa também o
cumprimento do princípio da eficiência previsto na Constituição Federal. A LGPD
possui um capítulo específico sobre “tratamento de dados pessoais pelo poder
público”, do art. 23 ao art. 30. Esses artigos definem algumas balizas normativas
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cruciais, como a “persecução do interesse público” e o tratamento para
“atendimento de sua finalidade pública” (art. 23, LGPD). duas condicionantes
especiais: a transparência ativa no provimento de informações sobre finalidade do
tratamento de dados, procedimentos e práticas utilizadas para execução das
atividades; e indicação de um encarregado quando realizem operações de
tratamento de dados.
Em 2023, a encarregada pela proteção de dados pessoais do Ministério do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome é Eliana Pinto,
nomeada pela Portaria MC n.º 538/2021.18 Qualquer requisição de acesso aos
dados pessoais pode ser feita pela plataforma Fala.Br, a partir da integração com
dados do Gov.br, que permite o rápido peticionamento pelo sistema de Ouvidoria
e Acesso à Informação.
4. A COMPATIBILIZAÇÃO DA LGPD COM UMA CULTURA DE DADOS
ABERTOS
A LGPD possui uma conexão intrínseca com dados abertos. O capítulo
sobre tratamento de dados pessoais pelo poder público possui uma regra
importante, que determina que os dados pela administração pública deverão ser
mantidos em formato interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com
vistas à execução de políticas públicas, à prestação de serviços públicos, à
descentralização da atividade pública e à disseminação e ao acesso das
informações pelo público em geral (art. 25, LGPD). O “uso compartilhado de
dados pessoais pelo Poder Público”, no entanto, deve “atender a finalidades
específicas de execução de políticas públicas” (art. 26, LGPD).
um grande debate sobre a compatibilização da LGPD com a Lei de
Acesso à Informação. Gasiola et al. (2021) chegam a afirmar que “a interação
entre o direito de acesso às informações administrativas e a proteção de dados
pessoais constitui a principal questão que o direito administrativo da proteção de
dados precisa resolver” (GASIOLA et al., 2021, p. 184).
Enquanto a LAI preocupa-se com “o acesso a informações” assegurado na
Constituição Federal, a LGPD dispõe sobre o tratamento de dados pessoais,
inclusive nos meios digitais, com o “objetivo de proteger os direitos fundamentais
18 Ver https://www.gov.br/mds/pt-br/acesso-a-informacao/lgpd/encarregado-da-lgpd
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de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da
pessoa natural”19. Retomando uma antiga expressão de Vittorio Frosini, tanto os
direitos de acesso à informação como o direito de proteção contra abusos nos
usos de dados pessoais são “as duas faces de Janus” (FROSINI, 1995) dos
novos direitos informáticos surgidos no século XX. Além do direito à informação
no sentido de poder informar (buscar e produzir informações) e de acessar
informações de interesse público, as democracias precisam instituir um “direito
reflexivo” (FROSINI, 1995), no sentido de um “direito do cidadão de acessar
informações sobre si mesmo, ou seja, checar, corrigir e refutar a propagação de
seus dados armazenados em bancos de dados” (FROSINI, 1995, p. 13).
Não deve existir incompatibilidade entre acesso à informação e proteção de
dados pessoais, pois seus fundamentos residem nessa concepção democrática
dos direitos informáticos (ARCOVERDE; RAMOS; ZANATTA, 2021). O que tem
ocorrido – e até mesmo assustado gestores públicos (RAMOS et al., 2022) – é um
desvirtuamento do fundamento de “liberdade de expressão, de informação, de
comunicação e de opinião” (art. 2º, III, LGPD) em razão de solicitações de não
divulgação de informações pessoais por serem, supostamente, uma violação à
imagem e honra, como ocorreu em decisões da Controladoria Geral da União em
casos envolvendo solicitação de acesso a dados de proprietários rurais
constantes do Cadastro Ambiental Rural (VERGILI; SALIBA, 2023).
O que ocorreu no Brasil, entre 2020 e 2022, foi um desvirtuamento da
lógica de interpretação da LAI e da LGPD. Infelizmente, partes interessadas na
ocultação de informações de interesse público mobilizaram o art. 31 da LAI (“o
tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com
respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às
liberdades e garantias individuais”) para fazer solicitações administrativas de
“acesso restrito”, chegando ao cúmulo de pedidos de restrição de acesso de até
cem anos. A própria LAI, no entanto, estipula que esse controle individual, por
meio do consentimento, é dispensável nos casos de informações de proteção do
interesse público e geral preponderante.
Como demonstrado por vários autores (ARCOVERDE; RAMOS; ZANATTA,
2021; GASIOLA et al., 2021; VERGILI; SALIBA, 2023), não uma questão de
19 LGPD, art. 1º.
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antinomia da LGPD com a LAI ou de supremacia dos argumentos de intimidade e
vida privada. O problema fundamental foi de exercício interpretativo pelas
autoridades, em casos concretos. Isso gerou uma altíssima demanda de
reversibilidade de decisões administrativas que foram iniciadas pela Controladoria
Geral da União em 2023, em uma perspectiva de rever milhares de decisões de
má interpretação entre as colisões entre privacidade e dados abertos.
O problema atual é de conhecimento dos gestores públicos com relação às
dinâmicas de funcionamento da LGPD, evitando essas equiparações com a ideia
de sigilo e ocultação da informação. A tensão provocada pela proteção de dados
pessoais é de outra ordem. Como reconhecido por Gasiola et al. (2021), enquanto
a administração pública é obrigada a dar publicidade de seus atos e fornecer
acesso às informações administrativas, exige-se a proteção dos dados pessoais
contra qualquer operação de tratamento de dados ilegítima. O conflite exige,
portanto, “ponderação, na forma de uma restrição recíproca aos direitos
fundamentais” (GASIOLA et al., 2021). um mandamento de transparência
ativa reconhecido no direito brasileiro, o que exige que a administração pública
amplie o acesso à informação de forma controlada e apurada.
Parte deste conflito está sendo solucionado pela contundente atuação da
Controladoria Geral da União. em 2022, o ministro Wagner Rosário (CGU)
editou o Enunciado n. 4/2022, que definiu que a LAI, a Lei 14.129/2021 (Lei de
Governo Digital) e a LGPD são sistematicamente compatíveis entre si e
harmonizam os direitos fundamentais do acesso à informação, da intimidade e da
proteção aos dados pessoais, não havendo antinomia entre seus dispositivos. O
Enunciado também deu primazia à lógica de abertura de dados ao afirmar que a
LAI, por ser mais específica, é a norma de regência processual e material a ser
aplicada no processamento desta espécie de processo administrativo. Em 2022, a
CGU firmou Acordo de Cooperação Técnica com a ANPD para garantir a
interpretação sistemática da LAI com LGPD, evitando a utilização dos argumentos
de proteção de dados pessoais para fechamento de informações de interesse
público. A parceria deu origem a um trabalho interpretativo, direcionado a
gestores públicos.
Em 2023, no governo Lula, o ministro Vinicius Marques de Carvalho
editou a Portaria Normativa CGU n.º 71/2023, com doze enunciados à aplicação
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da LAI. A Portaria diz, por exemplo, que informações sobre “entradas e saídas de
pessoas em órgãos públicos” são passíveis de acesso público, bem como
informações sobre registros de entradas e saídas em residências oficiais,
informações sobre licitações e contratos por órgãos de polícia e inteligência,
informações sobre currículos de agentes públicos, e informações referentes a
valores de benefícios pagos e identificação de beneficiários em programas
sociais, “desde que respeitado a privacidade dos dados pessoais e dos dados
sensíveis”. Mais importante, é o Enunciado 12/2023, que diz o seguinte:
O fundamento “informações pessoais” não pode ser utilizado de forma
geral e abstrata para se negar pedidos de acesso a documentos ou
processos que contenham dados pessoais, uma vez que esses podem
ser tratados (tarjados, excluídos, omitidos, descaracterizados etc.) para
que, devidamente protegidos, o restante dos documentos ou processos
solicitados sejam fornecidos, conforme preceitua o § do art. da Lei
12.527, de 18 de novembro de 2011, assegurando-se o acesso à
parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação
da parte sob sigilo. Além disso, a proteção de dados pessoais deve ser
compatibilizada com a garantia do direito de acesso à informação,
podendo aquela ser flexibilizada quando, no caso concreto, a proteção
do interesse público geral e preponderante se impuser, nos termos do
art. 31, § 3º, inciso V da Lei n. 12.527, de 2011, e dos arts. 7º, § 3º, e 23,
caput, da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (CGU, 2023).
Com essas movimentações da CGU, juntamente com a sistemática
pressão da sociedade civil organizada pelo Fórum de Acesso às Informações de
Interesse Público e o posicionamento em favor da abertura de dados de membros
da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (WIMMER, 2021), vai se
criando uma imagem mais clara da compatibilização da LGPD com a cultura de
dados abertos no Brasil.
Exercícios de ponderação sobre potenciais violações aos direitos
fundamentais de liberdade, privacidade e livre desenvolvimento da personalidade
não significam que a LGPD promove o fechamento das informações. Exemplo
claro disso é a iniciativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) de divulgar, a partir de agosto de 2023, os dados
completos de nome, CPF e CNPJ de autuados por infrações ambientais e de
quem teve áreas embargadas pela autarquia. A abertura de dados não fere a
LGPD pois trata-se de medida justa para execução de políticas públicas de
defesa do meio ambiente que são comandadas pelo ICMBio.
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A disponibilização dos dados na Plataforma Dados Abertos ICMBio,
disponibilizadas pela Divisão de Informações Geoespaciais e Monitoramento
(DGEO), é um exemplo claro de correta interpretação da LGPD no caso de
execução de políticas públicas e proteção ambiental. Esse é o mesmo
entendimento de Vergili e Saliba (2023), em estudo promovido sobre abertura e
disponibilização de informações de pessoas que cometeram ilícitos ambientais e
que estão registradas no Cadastro Ambiental Rural. A LGPD, neste caso
específico, é instrumental para criar condições procedimentais de uma política
pública que objetiva dar mais visibilidade e transparência aos ilícitos ambientais,
como casos de criação de gados em territórios indígenas ou áreas de
preservação ambiental. Não ilícito na divulgação de informações pessoais de
produtores rurais em condição de violação das normas ambientais, pois tal
divulgação relaciona-se com uma política pública da República. Nesse sentido, há
uma preponderância do interesse público relacionado à coibição de novos ilícitos
ambientais e a ampliação do acesso à informação para cidadãos, jornalistas e
esfera pública – com relação a quem comete tais ilícitos.
Os dispositivos previstos na LGPD permitem plena compatibilização com o
espírito democrático da legislação de dados abertos no Brasil. O que a LGPD irá
exigir é uma diligência com a natureza dos dados tratados, suas finalidades, a
localização do interesse público em sua disponibilização e a correta identificação
da base legal para tratamento dos dados.
5. CONCLUSÃO
A proteção de dados pessoais representa um avanço significado no
sistema normativo brasileiro, criando condições de tratamento lícito de dados
pessoais e formulação de políticas públicas, juntamente com a afirmação de
direitos fundamentais fundados na ideia constitucional da dignidade, que são
centrais em uma sociedade datificada e mediada por fluxos de informação do
ponto de vista da cidadania (RODOTÁ, 2011). Além da efetividade da LGPD
desde 2020, o julgamento de importantes casos no Supremo Tribunal Federal
como o caso IBGE (ADI 6387) e o caso do Cadastro Base do Cidadão (ADPF
6649) – permitiram que o Judiciário reconhecesse o caráter autônomo do direito à
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proteção de dados pessoais, que não é mais visto com equivalente ao sigilo ou ao
direito à privacidade.
Conforme argumentado por diversos autores no Brasil (DoNEDA, 2017;
DONEDA, 2021; FRAZÃO; OLIVA; TEPEDINO, 2019; MULHOLLAND, 2018;
BIONI; ZANATTA, 2021), a existência de uma normativa geral de proteção de
dados pessoais produz segurança jurídica, cria condições de tratamento lícito de
dados pessoais, prevê mecanismos claros de responsabilização e habilita a
formulação de políticas públicas que estejam alinhadas aos princípios gerais de
tratamento de dados pessoais, como a identificação de uma finalidade legítima, a
escolha dos meios corretos de tratamento de dados pessoais, a responsabilidade
preventiva com relação a danos e um compromisso com a dignidade da pessoa
humana, considerando que, mesmo em uma situação de execução de políticas
públicas pelo Estado, o cidadão estará no centro das atenções como titular de
dados pessoais.
Conforme argumentado neste artigo, a criação de uma adequada cultura
de experimentação em políticas públicas e abertura de dados exige um estudo
aprofundado das origens da LGPD e de seu conteúdo. Gestores públicos podem
se beneficiar enormemente de uma correta compreensão da LGPD. A legislação
não se confunde com normas sobre sigilo e não impõe confidencialidade sobre
informações da administração pública. Pelo contrário, a LGPD facilita e induz o
fluxo de informações na sociedade, desde que o tratamento de dados seja leal,
lícito e justo. A LGPD é uma norma flexível, arrojada, formulada para as
necessidades de uma sociedade da informação no século XXI. É preciso,
portanto, eliminar algumas concepções problemáticas que ainda persistem no
imaginário blico e que prejudicam a internalização dos valores da LGPD, como
a ideia de que a lei impõe sigilo automático às informações pessoais ou a ideia
de que a lei cria um obstáculo elevado para inovação e para usos secundários de
dados pessoais na redefinição de políticas públicas.
No entanto, como argumentado, a LGPD não se confunde com sigilo e
direito à privacidade. A LGPD não atrapalha políticas públicas, mas sim fomenta
políticas públicas intensivas em dados de forma justa. A LGPD não colide com
uma cultura de dados abertos. Ela incentiva uma disponibilização lícita de dados,
uma vez que seja identificado seu interesse público em ambiente democrático.
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Ao aprofundar os exemplos do Bolsa Família e do Cadastro Ambiental
Rural neste artigo, buscou-se exemplificar como que políticas públicas ligadas a
temas centrais da agenda brasileira, como combate à fome e proteção ambiental
(temas considerados como estratégicos pelo Brasil em 2024 na Presidência do
G20), estão intimamente ligadas à correta utilização dos dados pessoais e a
conformação da LGPD com as políticas públicas. Nesse sentido, defende-se que
a LGPD possa ser enxergada, por gestores públicos, a partir do prisma de suas
funções procedimentais em políticas públicas, sendo compatível com normas pré-
existentes sobre acesso a informação, como a Lei de Acesso à Informação. A
proteção de dados pessoais deve ser compatibilizada com a garantia do direito de
acesso à informação, do mesmo modo que deve servir de fundamento para a
concepção de políticas públicas.
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235, jul./dez., 2023.

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